A ministra preferiu posar trajando conjuntos sóbrios de seu armário e colares feitos por ela mesma,com haste da palmeira paxiúba,sementes de jarina e açaí. — Foto: Bob Wolfenson
Marina Silva está de luto. No dia das fotos para ELA,uma segunda-feira tumultuada em Brasília,após o avanço das queimadas no Pantanal,vestia um longo vestido preto. Associou a escolha do look à devastação do bioma e pediu para não usar as peças sugeridas pelo stylist da revista,todas de pequenas marcas sustentáveis. A Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima preferiu posar para as fotos desta edição que antecede o Dia Mundial de Proteção às Florestas,em 17 de julho,trajando conjuntos sóbrios de seu armário e colares feitos por ela mesma,sementes de jarina e açaí.
Em uma hora e 40 minutos de conversa,a ambientalista de 66 anos se emocionou ao repassar a própria trajetória e as nuances familiares que fizeram seu destino diferente do das seis irmãs com quem cresceu no seringal Bagaço,interior do Acre. Evangélica e mãe de quatro — a psicóloga Shalon,de 43 anos,o publicitário Danilo,de 41,a advogada Moara,de 34,e a jornalista Mayara,de 32 — posicionou-se contra a PL do aborto,que equipara a pena da vítima a de seu estuprador,e defendeu o ecofeminismo.
Constantemente desafiada a reagir aos desastres climáticos cada vez mais comuns no Brasil,Marina contou ter entregue ao presidente Lula um plano de investimentos para gestão de riscos de catástrofes,além de se equilibrar entre os interesses e pressões de um governo de frente ampla. Confira na entrevista a seguir.
O GLOBO - SUA mãe faleceu aos 37 anos e seu pai (morto aos 90,em 2018) criou sete filhas. Como eles fizeram para que seu destino fosse diferente do da maioria das mulheres do seringal,onde o casamento infantil era comum?
MARINA SILVA - Sou filha de pais nordestinos,que foram para o Acre e tiveram 11 filhos,três morreram e oito são vivos: sete mulheres e um homem. Com cinco anos,decidi que queria morar com a minha avó,costureira,e meu tio,que era xamã . Ele me estimulava com as coisas da floresta,com os mistérios,tudo que um seringueiro adulto tinha,ele fez para mim em miniatura. Minha mãe também era uma mulher muito forte,que adorava poesia de cordel. Sou de uma família de matriarcas. Minha mãe e minha avó,assim como minhas irmãs,são matriarcas,e desconfio que eu também seja. Minha mãe trabalhava na nossa roça de subsistência,partia lenha,fazia tudo. Não tinha esse negócio de isso aqui é homem que faz,isso aqui é a mulher que faz.
E suas irmãs?
Foram criadas pelos mesmos pais e também tiveram esses avós,mas infelizmente não tiveram a oportunidade. Numa época,minha irmã Lúcia veio fazer um tratamento médico aqui em Brasília e ficou uns meses comigo. Certa noite,eu estava trabalhando em um artigo,lendo o livro da Hannah Arendt (filósofa política alemã),e Lúcia pegou o livro e ficou meia hora lendo. Eu fiquei pensando: “Por que ela está interessada nessa leitura?”. Ela,então,abaixou o livro assim,em cima das duas pernas,olhou para mim e falou: “Para entender esse livro,eu teria que ter lido muitos outros antes”. (Marina se emociona).
Como a vida no seringal pautou sua militância em prol do meio ambiente?
Essas coisas que falei me atravessam,mas acho que essa observação que aprendi a ter da floresta,dos igarapés,das folhas e dos bichos,teve influência,principalmente,do meu tio xamã. A gente defendia a floresta,mas não nomeava o que era aquilo. Quem nomeou para nós foram Fernando Gabeira,Alfredo Sirkis,Maria Alegrete e Manuela Carneiro.
A senhora declarou apoio a Lula em 2022 após apresentar 26 compromissos que deveriam ser incorporados ao programa de governo. muitos não foram cumpridos,como a criação da autoridade climática. sente-se frustrada?
Um governo e um programa de governo são processos dinâmicos. Posso dizer que ver a política ambiental brasileira assumida como política transversal é gratificante. A autoridade climática é uma proposta,que continua em discussão. Agora tem uma decisão política,e em uma frente ampla você também faz mediação de interesses.
Nasceu na França,nos anos 1970,o ecofeminismo,movimento que associa a defesa do meio ambiente à igualdade de gênero. Como a senhora enxerga esse cruzamento?
Procurarmos ter uma relação mais orgânica,mais harmônica com a natureza,uns com os outros e com a gente mesmo. Isso só terá alguma chance se os valores do feminino forem integrados a nossa práxis. A visão que se tem do domínio das mulheres é a visão que se tem do domínio da natureza. E a visão que se tem de querer ser o dono do corpo das mulheres é a visão que se tem de querer ser o dono da natureza. Esse ethos civilizatório precisa mudar.
E a relação entre feminismo e religião? É possível defender a igualdade de gênero e crer no cristianismo,que oprimiu as mulheres?
Uma coisa é quando você fala do Cristianismo,outra coisa é quando você fala de Jesus Cristo. Jesus Cristo tinha uma relação de respeito com as mulheres. Não vejo essa incompatibilidade do respeito para com o direito das mulheres,porque o que há de mais radical na democracia é o livre-arbítrio,que Deus nos deu.
A senhora é evangélica e já declarou que Deus nunca iria concordar com o PL Antiaborto,que equipara a pena da vítima a de seu estuprador. Não é contraditório?
Não. Existem aspectos de consciência que não precisam ser necessariamente em função da religião. São por razões filosóficas,morais,éticas,culturais. Sempre defendi,e nas campanhas fui incompreendida,que o aborto deveria ser debatido num plebiscito. Somos um estado laico. Sou favorável às formas já consagradas de que,quando se trata de estupro,de risco a mãe e crianças sem cérebro,se a escolha da mãe for interromper a gravidez,que tenha o suporte do Estado.
A legislação não precisaria ser alterada?
Não digo que resolve,porque há um problema real,o sofrimento de milhares de mulheres que passam por uma gravidez indesejada. Precisamos trabalhar para que as mulheres possam ter condições de fazer suas escolhas. Não acho que o problema está resolvido com a legislação que temos. Não está. E não demonizar o debate,nem de quem é a favor nem de quem é contra. Entendo que talvez seja,nas circunstâncias em que estamos,a melhor parte da solução.
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Marina recebeu a reportagem para uma entrevista de uma hora e quarenta minutos — Foto: Bob Wolfenson
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No dia das fotos para ELA,vestia um longo vestido preto — Foto: Bob Wolfenson
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A ministra preferiu posar trajando conjuntos sóbrios de seu armário e colares feitos por ela mesma,sementes de jarina e açaí. — Foto: Bob Wolfenson
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A ambientalista de 66 anos se emocionou ao repassar a própria trajetória — Foto: Bob Wolfenson
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Marina contou ter entregue ao presidente Lula um plano de investimentos para gestão de riscos de catástrofes — Foto: Bob Wolfenson
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Evangélica e mãe de quatro filhos,posicionou-se contra a PL do aborto — Foto: Bob Wolfenson
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Publicidade Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima é capa de edição especial da Revista Ela
A maior presença de mulheres no governo surtiu alguma diferença prática nas discussões políticas?
É um aprendizado. Quando você está nesse espaço,tem que ter o superdesempenho,o super-resultado. É como se você tivesse o tempo todo que dar conta de não errar. Os homens podem fracassar porque quem fracassou foi o Antônio,o José,o João. Se a Marina fracassa,foi aquela mulher,Marina,que fracassou. Outra coisa é não ter alguém falando por você,interpretando o que você sente,porque você tem ouvidos de mulher para ouvir e compreender,ver a partir de você mesma.
Em 1990,16 dias após dar à luz sua terceira filha,a senhora,então vereadora de Rio Branco,foi chamada às pressas à Câmara porque poderia ter o mandato cassado por faltas “injustificadas”. Como analisa a evolução da presença feminina na política?
Esse episódio foi terrível. O regimento interno não previa a maternidade. Um vereador de oposição pediu a cassação do meu mandato por falta injustificada. O requerimento ia ser votado e me ligaram. Foi muito difícil,fui para a tribuna para me defender e o meu peito estava muito cheio de leite. De repente,começou a vazar,me molhou toda e eles ficaram rindo de mim. E aí eu não conseguia mais falar (aqui Marina se emociona novamente),comecei a chorar e ninguém fazia nada.
E o que aconteceu depois?
Houve uma comoção na cidade,e a situação mudou da água para o vinho porque,no outro dia,eles votaram por unanimidade uma emenda para prever os 40 dias de resguardo. Então,vejo ganhos,conquistas,mas não considero evolução. Uso o termo ganhos e conquistas porque tudo que evolui pode involuir,pode até regredir,não é como se fosse um processo natural.
Na questão sobre A exploração de petróleo na Margem Equatorial,a senhora é contra,mas boa parte do governo é a favor. Como se equilibra nisso?
Não se trata de ter posição contrária ou a favor. O licenciamento é um processo técnico,avalia se o projeto é viável do ponto de vista ambiental,econômico e social. Não é a Ministra do Meio Ambiente que faz o parecer. O debate sobre exploração ou não exploração é o desafio da Humanidade que está posto.
No governo,com frequência,é colocado um espírito de fla-flu sobre temas ambientais. Como lida com as pressões de diferentes interesses?
As pressões dos diferentes interesses que estão dentro do governo são as mesmas que estão dentro da sociedade,da empresa que produziu o meu sapato ou o meu alimento,porque a sociedade se move por interesses. E não é errado ter interesses,o erro é quando alguém acha que pode impor o seu interesse de forma ilegítima. Hannah Arendt,a filósofa,diz que tem duas coisas com as quais não conseguimos lidar: uma é a força do irreversível e a outra é o poder do imprevisível. Para o irreversível,que é a ação humana,só existe uma cura: o perdão. Só que ela diz também que só podemos perdoar aquilo que podemos punir. Isso é um pensamento filosófico brilhante.
Houve falhas em combater as queimadas no Pantanal,que registram recordes agora?
Houve uma antecipação do período em que a gente historicamente tem a incidência de grandes focos de incêndio,de queimadas,em relação ao que está acontecendo agora. Dois meses de antecipação. Mas será que teríamos a capacidade de estar atuando,com dois meses de antecipação do fenômeno,se não tivéssemos feito planejamento? Só posso trazer fatos e compromissos. Existem forças e fenômenos da natureza que,por mais que você tenha de planejar e se preparar,não vai dar conta como gostaria.
Como preparar as pessoas para as mudanças do clima e esse “novo normal”?
É um processo de adaptação. Entregamos ao presidente Lula e ao ministro chefe da Casa Civil (Rui Costa) um plano estratégico para o enfrentamento da emergência climática em função de eventos extremos. O plano prevê várias frentes,uma delas é uma agenda robusta de adaptação,de investimentos e infraestrutura,drenagem de encostas,remoção de população.
Nesse novo contexto,a indústria da moda pode ficar menos poluente?
Todos os processos industriais terão que passar por processos de adaptação e de transformação,porque não é mais compatível com a capacidade de suporte dos ecossistemas,as ações humanas e empresariais que sejam de alto impacto ambiental. Temos que compatibilizar as nossas necessidades com a capacidade dos ecossistemas de absorverem esses impactos e obviamente que vamos ter que trabalhar para diminuir cada vez mais o emprego de corantes,de substâncias químicas que sejam nocivas ao meio ambiente e sistemas de tratamento eficientes.
Seus amigos afirmam que,embora tenha aparência frágil,a senhora é forte e teimosa. Em quais momentos sai do sério?
O que eles chamam de teimosa,eu chamo de persistente. A injustiça sempre é uma coisa que me tira do sério. Tanto que prefiro sofrer uma injustiça do que praticar uma. Porque talvez a vida me fez passar por muitas situações de injustiça. E eu aprendi a manejá-las. Você decide acreditar nas pessoas mesmo sabendo que talvez elas não tenham a mesma crença em você. Você decide respeitar as pessoas mesmo sabendo que talvez elas não tenham o mesmo respeito por você.
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