Trump sobe ao palco para um comício em Duluth,na Geórgia,um dos estados-chave — Foto: Anna Moneymaker / Getty Images via AFP
Daphne Matthews e Daeniel Bolton caminhavam na última sexta-feira pela Avenida Auburn,no coração de Atlanta,onde o mais célebre líder da luta pelos direitos civis dos negros americanos,Martin Luther King Jr.,nasceu e viveu até a adolescência,na primeira metade dos anos 1940. Sua casa e os quarteirões próximos formam hoje o Memorial Nacional Histórico dedicado ao reverendo batista,assassinado em 1968. Também negros,a gerente de fábrica aposentada,de 60 anos,e o funcionário da Universidade do Estado da Geórgia,de 40,não se conhecem. Mas comungam da mesma cautela ao tratar da eleição que qualificam como a mais importante de suas vidas. Apesar das dezenas de placas da chapa democrata os encararem dos gramados das casas da vizinhança,não revelam em quem votarão no próximo dia 5.
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As razões do mistério são mais reveladoras da reta final da disputa entre o ex-presidente Donald Trump e a vice Kamala Harris do que as pistas oferecidas ao enumerarem as qualidades por eles desejadas para o substituto de Joe Biden na Casa Branca— empatia com os mais vulneráveis para Daphne,equilíbrio e seriedade no trato da coisa pública por Bolton. A nove dias das eleições,e com 33 milhões de votos já depositados nas urnas,as pesquisas,inclusive as derradeiras do New York Times e da CNN,divulgadas na sexta-feira,seguem cravando empate entre Donald Trump e Kamala Harris,tanto nos votos totais quanto nos sete estados decisivos,entre eles a Geórgia,mas agora com o ex-presidente em tendência de alta e a vice estacionada.
— A disputa aqui é voto a voto,casa a casa. Na minha rua,todos sofremos com o aumento de hipotecas e aluguéis nos anos seguintes ao da pandemia. Metade dos vizinhos é saudosa dos anos Trump,quando tinham mais dinheiro no bolso,e a outra enxerga em Kamala o novo,querem fazer História com ela. Nunca foi tão fácil para mim escolher em quem votar,mas não uso nem adesivo de campanha para não aumentar o sofrimento alheio — diz Daphne.
Daphne Matthews,eleitora do estado da Geórgia,nos EUA — Foto: Eduardo Graça
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Bolton também recorre à inflação alta dos anos Biden para justificar sua reticência em declarar em voz alta,como em anos anteriores,em quem votará. Mas põe o dedo mais fundo na ferida:
— A economia é o combustível principal para algo menos tratado abertamente: a misoginia. Conheço muita gente que sempre votou democrata e agora ou ficará em casa ou votará em Trump por não considerar uma mulher capaz de comandar o país e,simbolicamente,eles mesmos. Isso,por si só,já é uma desgraça,independentemente de quem vencer.
Daeniel Bolton,eleitor de Geórgia,nos EUA — Foto: Eduardo Graça
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Depoimentos como os de Daphne e Bolton têm deixado a campanha democrata de cabelo em pé. Se for incapaz de abrir frente em seus redutos tradicionais,a vitória no photochart em estados decisivos,onde Biden derrotou Trump em 2020 por pouco mais de 11 mil votos,se inviabiliza. E,por conseguinte,dá-se adeus à Casa Branca.
Os republicanos chegaram decididamente mais confiantes aos últimos dias de uma campanha marcada pela troca do candidato que buscava a reeleição às vésperas da Convenção Democrata e por duas tentativas de assassinato do líder da oposição. Trump crê ter acertado ao desafiar o comando de sua campanha,que defendia mirar exclusivamente no que as pesquisas mostram ser os pontos mais frágeis de Kamala — economia e imigração. Sem deixar de lado a pregação xenófoba,o ex-presidente aumentou o tom dos ataques baixos e mentirosos a Kamala (“fascista”,“comunista”,“com QI baixo”,“preguiçosa”,“viciada”). Sua aposta é a repetição de 2016,quando derrotou a ex-secretária de Estado Hillary Clinton com a força de sua base.
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Ao mesmo tempo,interrompeu eventos para falar do tamanho da genitália de um mito de golfe e dançar ao som de Ave Maria e hits do Village People. Vulgaridades e bizarrices que o levaram a ser ridicularizado por seu antecessor,Barack Obama. No Wall Street Journal,o todo-poderoso conselheiro de George W. Bush,Karl Rove,no entanto,cravou: “Quem parece estar se divertindo na campanha é Trump,não mais Kamala. E isso faz com que ele passe,justo no fim,a aura de vitorioso”.
Entre os democratas,já há quem questione se foi um erro a mudança de rumo da campanha. Deixou-se em segundo plano a “alegria” que marcara a apresentação de Kamala aos americanos,em tudo oposta ao cenário sombrio dos comícios do ex-presidente. E investiu-se,em uma repetição da estratégia vitoriosa de Biden,em 2020,no alerta aos eleitores do risco aumentado de uma segunda temporada de Trump na Casa Branca. Os alvos são,a partir do que indicam pesquisas internas do Partido Democrata,eleitoras do subúrbio dos estados decisivos — com histórico de voto republicano,mas anti-Trump — decididas a proteger seus direitos individuais,notadamente os reprodutivos,e assustadas com a escalada autoritária da retórica do ex-presidente.
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A campanha governista subiu ainda mais o tom após as acusações do general de reserva John Kelly,chefe de Gabinete de Trump entre 2017 e 2019,de que o ex-presidente “se encaixa na definição de fascista” e fez menções elogiosas a Hitler. Ao mesmo tempo,Trump afirmou que,se eleito,usaria militares para enfrentar “inimigos internos” dos EUA,entre eles a ex-presidente da Câmara Nancy Pelosi. O termo foi usado pelo macarthismo nos anos 1950 para justificar a perseguição a esquerdistas,em uma caça às bruxas que ameaçou a democracia americana.
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O estrategista republicano Frank Luntz deu de ombros e afirmou à CNN “não ser coincidência Kamala ter congelado nas pesquisas ao parar de oferecer razões para se votar nela e passar a enfatizar os perigos da volta de Trump”.
— Por outro lado,se não tivesse reagido após denúncias tão sérias,estaríamos discutindo como Kamala perdeu a oportunidade de ir na jugular de Trump — pondera Jonathan Hanson,da Universidade de Michigan.
O cientista político concorda que a eleição segue disputada “casa a casa” nos estados decisivos,como relatou Daphne Matthews em Atlanta,e lembra que a aposta nas eleitoras dos subúrbios foi vitoriosa para os democratas desde o fim do direito federal ao aborto pela Suprema Corte,de maioria conservadora,resultado das indicações de Trump. As urnas assim seriam mais parecidas com as de 2020 e 2022 do que com as de 2016.
Stephen Duncombe,da Universidade de Nova York,é ainda mais direto:
— A estratégia de carimbar Trump como fascista só terá sucesso se a maioria dos americanos de fato não desejar um fascista no poder. Saberemos se é o caso na semana que vem.
© Reportagem diária do entretenimento brasileiro