Cesar Grafietti,especialista em finanças do esporte — Foto: Arquivo pessoal
GERADO EM: 15/09/2024 - 04:00
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Há anos,o economista Cesar Grafietti,especialista em finanças do esporte e sócio da consultoria Convocados,estuda,entre outros aspectos,a sustentabilidade financeira no futebol brasileiro. Referência na área,ele já apresentou propostas à CBF e a grupos de formação de liga. Agora,com discussões sobre fair play financeiro de volta à tona em meio à ascensão esportiva das SAFs,o consultor reflete ao GLOBO sobre as particularidades que devem ser levadas em conta na possível implementação de uma política de sustentabilidade por aqui. E analisa quais clubes teriam mais ou menos dificuldade para se enquadrar.
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— A gente tem que desmistificar o fair play financeiro,porque ele não é um processo que vai igualar todos os clubes. Não vou pegar aquele clube que fatura 100 e deixá-lo igual ao que fatura 1.000. Sempre haverá essa diferença. Não é um modelo para unificar gastos ou equalizar gastos. É para garantir que o sistema opere equilibrado. Porque um sistema equilibrado,sem atrasos,sem problemas de pagamento,ganha credibilidade e atrai dinheiro — explica o especialista,que defende a qualificação de dirigentes nesse cenário.
Três anos depois da composição das primeiras SAFs,os clubes brasileiros valem mais?
As SAFs trouxeram um balizamento do ponto de vista de gestão. Começaram uma visão mais corporativa e isso,de certa forma,valoriza o futebol como um todo. Quando havia só associações,ninguém sabia como seria a gestão de um clube na mão de um dono. Hoje,nós temos exemplos de clubes que tiveram desempenhos melhores. O Botafogo,o Bahia. De certa forma,menos (em patamar) o Bragantino,o Cuiabá. Mas são casos claros de evolução. Mesmo o Vasco,com toda a confusão que existe internamente,também tem uma gestão que é melhor do que era na época só da associação. O problema que existe lá acabou cortando esse processo de evolução,mas certamente é melhor do que era antes. O Coritiba também está indo nessa direção de melhorar em relação ao que tinha.
Isso significa que os ativos,quando passam para a mão de um investidor,tendem a ter melhor desempenho do que como associação. Isso aumenta o interesse e o valor proporcional do negócio. Então,quem tinha a intenção de investir em uma associação ou em uma nova SAF sem uma referência,hoje tem a de que,se fizer um bom trabalho,pode ter retorno. E isso faz com que o valor original do clube passe a ser maior. O valuation,o valor do negócio no Brasil,claramente cresceu desde o início da SAFs.
O que define esse valuation?
Tem várias formas de calcular. No futebol,quando pegamos os exemplos de mercados mais maduros,como os europeus,em linhas gerais,é um múltiplo da receita. Se a receita vale 100 milhões de euros,um clube médio de uma liga média europeia vale duas vezes a receita,200 milhões. A receita é a referência de tudo que o clube tem como operação. Quanto o elenco gera,bilheteria,sócio-torcedor,negociação de atleta,o quanto a torcida importa na bilheteria,na compra de merchandising,de produtos,assinatura de TV,quanto vale o estádio,quanto ele gera de receita. Essa receita (também) é mensurada pelos contratos de publicidade. Toda a estrutura está,de alguma forma,vinculada à receita. Se aplica um múltiplo em relação a essa receita em proporção. Os clubes de menor receita,que normalmente têm pior desempenho,porque a receita o baliza de certa forma,valem um pouco menos porque correm mais risco de cair. Os de maior receita têm um múltiplo um pouco maior justamente porque são mais competitivos e têm acesso a mais receitas e um potencial de crescimento maior.
E no Brasil?
A realidade é um pouco diferente. A associação não vende o clube,porque não pode receber esse dinheiro e distribuir para os sócios. O que se faz é "qual é o melhor plano de negócios para este clube? Quanto a associação cobra do investidor ou do novo dono da SAF para fazer investimentos,melhorar o clube e torná-lo cada vez mais competitivo?"Fazer contas de valuation ajuda,se eu quiser aplicar um múltiplo em cima da receita dos clubes brasileiros. Mas o que mais importa é quanto de investimento eu vou receber deste investidor para transformar o meu clube. No final das contas,o que vale aqui é muito mais um potencial de crescimento,de expansão,aplicados os investimentos,do que tentar fazer uma conta se vale duas ou três vezes a receita,porque no fim do dia isso tem pouco impacto para o investidor. O investidor quer saber quanto vai conseguir melhorar da estrutura do clube e tirar mais dinheiro lá na frente.
Landim e Textor levantaram debates sobre políticas de sustentabilidade financeira — Foto: Divulgação/Botafogo
Como se ganha dinheiro investindo em futebol?
Isso vale para o Brasil e para qualquer mercado. No futebol,não se tira dinheiro com dividendo (retorno percentual do lucro aos acionistas),se ganha comprando um clube barato,entre aspas,de divisão inferior ou,geralmente,de terceiro terço de tabela. Investe,melhora a estrutura,cresce,aumenta as receitas e o valor final,aplicando um múltiplo melhor numa receita maior. A segunda forma,que pode estar associada ou não,é ter uma estrutura de formação de jogadores,que pode ser de base ou de compra. Você compra por 100 e vende por 1.000,vai ganhar um bom dinheiro e distribui parte disso para o acionista. Só se ganha dinheiro com futebol fazendo bem essas duas operações. Melhorando a gestão do clube e crescendo do ponto de vista esportivo e de receitas ou vendendo atletas.
Já temos algum caso de retorno financeiro no Brasil?
Há um caso claro de valorização,que é o Cruzeiro. Quando o Ronaldo entra,ele e a estrutura dele aportam algo em torno de R$ 50 a 70 milhões e depois vendem por volta de R$ 150 milhões ao Pedro Lourenço (empresário). Ele ajudou no processo de reestruturação das dívidas,subiu o clube,manteve-se na Série A no primeiro ano,organizou uma estrutura operacional bastante eficiente e vendeu. Teve um ganho justamente nessa transição. As outras SAFs também são parecidas com isso? Eu acho que,dentre todas elas,a mais clara é o Botafogo. Vinha de um processo de reestruturação,já tinha subido ali naquele "pré-John Textor",só que hoje se tornou um clube competitivo de fato.
Ronaldo e Pedro Lourenço — Foto: Gustavo Aleixo/Cruzeiro
Saiu da zona intermediária baixa de tabela,já está numa zona mais alta,fazendo mais receitas. Se o Textor quisesse vender o clube hoje,certamente já valeria mais do que valia quando ele pegou. O Vasco ainda está em transição. O Bahia tem um outro modelo,que é de estar dentro de um grupo grande como o City e vai trabalhar essa formação de atletas muito mais do que simplesmente valorizar para vender. O Coritiba ainda é muito recente. Mas o Cruzeiro já é um caso executado,realizado o ganho. O Botafogo é um caso claro de clube que mudou de patamar a partir do momento que virou SAF.
Essas diferentes estratégias nos modelos de negócios de cada SAF também acontecem no mercado europeu?
É a diversidade natural do futebol. Sempre vai haver diversos interesses em quem compra um clube. Traz não só a possibilidade de retorno financeiro,mas de imagem,reconhecimento,te coloca numa cena de contatos que podem gerar negócios em outras áreas dos acionistas. Tem desde o investidor que eu chamo de institucional,que são os fundos de private equity (compra,valorização e revenda de ativos) americanos,donos do Milan,da Inter e do Liverpool,por exemplo. São caras que estão olhando muito mais o financeiro a partir do operacional,a partir do futebol,para buscar ganhos do que qualquer outra coisa. Tem o modelo do PSG,do famoso sportswashing,de mostrar-se para o mundo,(de se mostrar) um pouco mais próximo do mundo ocidental,de certa forma. Os modelos muito próximos são os italianos. O Napoli com o Aurelio De Laurentiis,a Lazio com o Claudio Lotito,a Juventus com o grupo Exor,que são aqueles caras que gostam do futebol,que investem e o tem como uma paixão,um adicional de relacionamento. São quase mecenas que colocam dinheiro.
São muitos bem geridos. Especialmente o Napoli,apesar de ter um dono que injeta dinheiro,que faz negócios e que enxerga o futebol como quase um hobby. Tem as associações como Barcelona e Real Madrid. Existem várias formas de pensar na Europa e acho que estamos ganhando um pouco desses conceitos no Brasil. Estamos simplesmente trazendo a ideia do que existe em mercados maduros para o mercado brasileiro,que realmente não deveria ser muito diferente. Nós temos os torcedores (investidores) que querem um time forte para deixar um legado,nós temos o investidor pessoa física,nós temos o grande grupo internacional árabe,um grupo de private equity brasileiro,que é o caso do Coritiba.
A capacidade de geração de receitas ainda evolui nos clubes brasileiros. As receitas têm que ser pilar nas discussões sobre uma possível implementação de uma política de fair play financeiro por aqui?
O Flamengo teve um crescimento recorrente e muito rápido de receitas porque estava muito represado,tinha muito menos do que o seu potencial. Quando muda a estrutura de gestão,ganha credibilidade,esse crescimento exponencial é muito rápido,é um caso realmente à parte. Mas os outros clubes têm crescido,o Corinthians deve bater R$ 1 bilhão de receitas esse ano,o Palmeiras deve estar muito perto disso,o São Paulo talvez um pouco mais lentamente,mas segue crescendo. Os clubes estão crescendo talvez de uma forma mais lenta porque temos um processo desestruturado do ponto de vista de negócio. Cada clube faz do seu jeito e você não tem uma visão de indústria coletiva. Mas temos crescido,com alguma recorrência.
Dito isso,a receita vai ser sempre uma referência. Se tivermos como controle e essência do fair play financeiro a ideia de manter o sistema operando em equilíbrio,significa que não pode haver pagamentos sem atraso. Para que isso aconteça,eu preciso ter sobra de dinheiro,ou seja,gastar só o que eu arrecado. Naturalmente,a receita vai ser a principal referência de um sistema de sustentabilidade financeira. Claro que ela não vai ser a única,especialmente no momento em que o Brasil se encontra. Na Europa,se fala pouco de dívida,porque os clubes já estão numa fase onde o nível de endividamento é muito baixo. Quando ele é muito alto,se reflete em dívidas que são impagáveis,em atrasos e impactos que a receita não consegue acompanhar. A receita sempre será fundamental,mas no Brasil,num primeiro momento,(a implementação desse tipo de política) significa necessariamente incluir um controle de endividamento para fazer com que os clubes caminhem para um nível que seja sustentável e não operem nesse nível que boa parte tem hoje,que acaba consumindo parte da receita e tornando a gestão insustentável.
Os clubes brasileiros convivem há décadas com a inadimplência e dívidas. Essa responsabilidade se discute pouco quando se fala em fair play financeiro?
Eu acho que sim. Todo mundo fica só pensando na receita,em quanto vou gastar,sempre em gastar. Se pegarmos como exemplo os times que estão sempre entre os melhores colocados na tabela nos últimos cinco anos,eles têm duas características. As poucas dívidas,ou administráveis e compatíveis com as receitas. (Nesse caso) Vamos citar sempre em Flamengo,Palmeiras,Athletico,Grêmio,agora o Bahia e o Fortaleza; ou o caso do Atlético Mineiro,mais recente,em que um mecenas colocou dinheiro em 2021. E o Cruzeiro,um pouco mais,agora. Os clubes com muitas dívidas têm muita dificuldade em operar. O Internacional tem sempre altos e baixos porque tem uma dívida grande. O Fluminense tem muitos altos e baixos também,deu um grande all in ano passado e conseguiu ganhar a Libertadores,mas ainda assim perdeu dinheiro. O Corinthians,hoje com R$ 1 bilhão de receita,tem dificuldade em operar,porque só de custos financeiros são mais de R$ 250 milhões por ano.
Os clubes dão pouca importância para a dívida,e aí tem sempre um aspecto que me chama a atenção. São devedores contumazes,atrasam uma série de itens,especialmente fiscais,tributários,trabalhistas,e depois renegociam isso ali em 10,12 ou 15 anos. Só que como isso acontece todos os anos,uma hora começa a ter que pagar,e aí você acumula tantos parcelamentos que eles se tornam uma obrigação muito grande quando têm que ser pagos. Ter dívida por si só não é um problema,o problema é ter uma dívida que seja impagável,ou,no caso desses clubes,uma dívida cujo dinheiro de hoje está pagando problemas do passado.
Isso se aplica a transferências?
Flamengo e Palmeiras,por exemplo,têm dívidas também,mas por contratações de atletas,que estão gerando efeitos e benefícios hoje. Os clubes estão investindo em contratações que vão gerar resultado hoje,amanhã e para o futuro,seja na categoria de base,seja no profissional. Enquanto os clubes que ficaram renegociando dívidas o tempo inteiro e atrasando estão pagando hoje dívidas do passado que não geram nenhum benefício atualmente. Fala-se pouco da dívida,alguns clubes preferem dizer que ela é menos relevante,porque é uma forma do clube tentar ganhar valor. Deixar de pagar encargos,não recolher o fundo de garantia,são gastos que você deixa de ter,mas que vão virar um problema,para daqui a cinco,seis,sete ou dez anos,que vai ficar para uma outra gestão. Os dirigentes dão pouca importância porque o governo é leniente nesse sentido,e segue fazendo renegociações e renegociações,que só dão margem para que os clubes continuem fazendo a mesma coisa.
Quando se olha,para compra de direitos de atletas... clubes no Brasil acabam não pagando outros clubes no Brasil,e isso fica um pouco deixado de lado. Os clubes acabam não se cobrando,não fazem esse processo. Quando você compra um jogador de um clube de estrangeiro e não paga,ele vai para a Fifa e isso vira um transfer ban. O clube é obrigado a correr e pagar. Por isso que esse tipo de dívida é cada vez mais difícil,cada vez mais complicado de assumir,porque se não tiver capacidade de pagar,vai ter um problema. Enquanto no Brasil,essa coisa vai sempre sendo uma ação entre amigos e ninguém cobra de ninguém.
No cenário hipotético da aplicação de um modelo de fair play financeiro no Brasil,que clubes se adaptariam melhor e quais teriam dificuldades?
Sempre hipoteticamente falando,usando os modelos que tem lá fora,que não consideram dívida nessa situação,claramente os "suspeitos" de sempre são aqueles que estão melhores,que se adaptariam mais rapidamente. Flamengo,Fortaleza,Grêmio. São clubes que estão mais adaptados. No caso das SAFs,o Atlético-MG. O Cruzeiro do Ronaldo certamente estaria mais próximo desse equilíbrio. Nos demais,mesmo o Botafogo ou o Atlético-MG,precisamos ver números para ver se de fato eles se reequilibraram ou não. O dirigente fala muito que está assim ou está assado,mas nós nunca sabemos enquanto os números não chegam. Muitas vezes,quando aparecem,desmentem o que o dirigente falou ao longo da temporada.
Ao mesmo tempo,temos alguns casos mais complicados. Internacional,Corinthians,Santos,Fluminense. O São Paulo no meio desse caminho entre um e outro. São clubes que teriam muita dificuldade em se adaptar rapidamente. Precisariam de um bom tempo para conseguir entrar em equilíbrio. Clubes como Juventude,o Cuiabá e o Criciúma,facilmente se adaptariam porque já operam em equilíbrio. O Cuiabá,de pequeno porte,é relativamente competitivo há três anos na primeira divisão mesmo com menos dinheiro do que outros. Porque não tem dívida,tem uma gestão eficiente,gasta só o que pode. Talvez a grande dificuldade no Brasil hoje seja que muitos clubes importantes de grande torcida estão em dificuldades e desvirtuando o mercado. Mas temos,sim,uma boa parte que já andou,já evoluiu nesse sentido e se encontra em uma condição mais equilibrada.
Cuiabá é exemplo de gestão equilibrada — Foto: MARCOS BRINDICCI / AFP
Nos modelos de fair play europeus,há limitações para quanto os acionistas podem aportar na redução dos prejuízos. Isso aplicado no Brasil poderia entrar em conflito com a lei das SAFs?
Não. Na verdade,seria uma forma de controle do dinheiro que se aplica dentro do sistema. Na Premier League,são 90 milhões de libras (de aporte permitido sobre os prejuízos) no acumulado de três anos. Na Uefa,são 30 milhões de euros também no acumulado de três anos. Vamos pensar que todas as SAFs têm por volta de dois anos completos. Você tem alguns prejuízos inicialmente para refazer as reestruturações de passivo,reforçar o elenco no primeiro ano,gastar um pouco no segundo,isso vai aumentar o custo da operação. No terceiro,você tem que começar a dar resultado e equilibrar as contas. Hoje,o nome que se fala muito,o Botafogo talvez tivesse problemas de enquadramento no fair play financeiro europeu,porque ele está num momento de investimento. Mas,à medida em que ele passe,para o próximo ano e tenha lucro porque vendeu jogadores,gastou um pouco menos,teve premiação por conquistas,na soma dos períodos ele vai se equilibrar. Um erro comum que nós cometemos aqui quando falamos do momento do futebol brasileiro,é que todo mundo,quando compara com a Europa,esquece ou ignora que lá há um período sempre de três anos para fazer essas contas. Nós ainda estaríamos na formação desse período de três anos para avaliar se lá na frente o acumulado estaria dentro ou fora da regra.
Acho que essa regra de permitir aportes é importante por algum momento,porque traz o acionista para dentro do jogo,ele é obrigado a colocar dinheiro para equilibrar aquele gasto que ele fez a mais,mas ela não pode ser eterna. Em algum momento,você tem que forçar o clube a trabalhar sempre o máximo possível dentro das suas possibilidades,sem depender de tantos aportes do acionista. Pensando em sistema que está tentando organizar e reduzir o risco,toda vez que um clube gasta muito mais do que pode e o acionista coloca dinheiro,se em algum momento ele desiste porque cansou de gastar dinheiro,não conquistou nada ou o dinheiro acabou,ele vai deixar um problema,porque os custos são de longo prazo. Se os aportes param de acontecer,você vai continuar tendo problemas para honrar esses seus custos. Nesse cenário que nós temos,dá para dizer que eles são positivos,porque esses aportes estão ajudando a pagar dívidas,a reestruturar os clubes,a reforçar elencos que estavam muito desestruturados,mas disso a gente vai ter que ir desmamando ao longo do tempo para fazer com que os clubes possam,maduros,operar sem necessidade de aportes dos acionistas.
John Textor,investidor do Botafogo — Foto: Vítor Silva/Botafogo
Como eram os modelos de política de fair play que você apresentou à CBF e às ligas?
Temos que lembrar que esses modelos,mesmo na Europa,vêm mudando,se adaptando às próprias mudanças de mercado. O modelo de 2019 era até bastante complexo,porque eu combinava uma série de índices que consideravam custo em relação à receita,dívida em relação à receita,capacidade de investimento,limitações de investimento. Eu comparava tudo isso e criava uma nota para dizer se num comparativo mais amplo e profundo o clube estava equilibrado ou não. Isso foi naquele momento,depois nós tivemos pandemia,SAFs,uma série de clubes que,apesar de tudo isso,se equilibraram. Antes da troca de comando na CBF,nós discutimos já uma fase 2,que era reduzir aqueles dez índices combinados para transformar num controle um pouco mais simples,também já em linha com o que se fazia na Europa,porque também já tínhamos passado quase cinco anos do início do projeto. Era controlar pagamento de dívida em dívida,não poder ter atraso,controlar custo e receita.
Com essas três dimensões,a gente de alguma forma conseguia controlar os clubes e saber quem estava em ordem ou não. Depois disso,além desse projeto que foi entregue na CBF,eu fiz um outro projeto dentro do âmbito das discussões de liga que também ia por esse caminho,limitar atraso,controlar o máximo de gastos já fazendo uma conexão de acordo com o nível de endividamento que cada clube tinha. Clubes como Fortaleza ou Cuiabá,que devem pouco e têm pouca dívida para pagar,eu autorizo,que gastem até 100% da receita. Se não sobrar nada no fim do ano,não importa,porque não tinha dívidas para pagar. Desde que ele continue pagando as suas contas em dia,não tenha atrasos,não tenha problemas de falta de pagamento,pode gastar tudo que ele arrecadou.
E nos clubes mais endividados?
Nos que devem duas,três vezes a receita,eu vou fazer esse clube gastar menos de alguma forma. Permito que ele gaste menos para que sobre dinheiro e direcione essa sobra para ir amortizando as dívidas. Esse é um modelo que,na minha visão,se controlar pagamentos em dia e essas duas dimensões,naturalmente forçaria os clubes para o equilíbrio. Claro,não vai ser do dia para a noite,a gente está falando de um processo de adaptação que,para muitos clubes,poderia demandar três,quatro ou cinco anos. Mas,na média,dou liberdade para quem tem pouca dívida de gastar e controlo o gasto de quem tem muita dívida.
É um sistema que a gente tem que pensar como educativo,não como punitivo. Educativo no sentido de mostrar que é importante se reequilibrar. Não é um "você errou,eu vou te punir". Claro,mesmo quem erra tem que ter alguma punição. A melhor forma de ser educativo com o dirigente é forçá-lo a gastar menos. Você faz isso aplicando transfer ban. Ele não vai conseguir passar duas,três,quatro temporadas sem contratar ninguém. Oque mais incomoda o dirigente é não ter a capacidade de fazer contratação. Eventualmente,uma segunda sanção,se seguir quebrando essas regras,seria deduzir pontos,uma questão um pouco mais esportiva. Mas nunca falando em rebaixamento,questões nesse nível. Sempre tentando induzir o dirigente para que naturalmente ele migre para um sistema com uma estrutura mais equilibrada.
É possível implementar esse tipo de política sem uma liga unificada? Quem fiscalizaria?
Na França,é um órgão criado pelo governo. É uma lei,não tem nada a ver com a liga nem com a federação. Na Itália,agora foi criado um também. Era um órgão independente de clubes e federações ligado à bolsa de valores e agora vai ter um também criado pelo governo para fazer esse controle. Em Inglaterra,Espanha e Alemanha,são órgãos da própria liga e federação que fazem esse controle. No Brasil,mesmo sem uma única liga,naturalmente quem deveria estar preocupado com isso é quem controla,quem cuida da gestão do produto. Deveria ser,em primeiro lugar,a CBF. Mas a CBF é uma entidade política,tem dificuldade em aplicar esse tipo de sanção. O ideal é que (seja) a partir dos clubes,que mesmo em dois grupos de negociação de direitos separados,continuam disputando a mesma competição. Que eles criassem ou desenvolvessem uma estrutura independente junto à CBF que tivesse,eventualmente,a supervisão de algum órgão,mas que sancionasse baseado nas regras.
Deveria nascer hoje dos clubes,até porque hoje não temos liga. Mas convenhamos,daqui a dois,três ou cinco anos,nós teremos uma liga,essa realidade já está mais próxima do que há três anos. Então,poderia até ser um indutor. A partir do momento em que todo mundo está dentro da mesma estrutura de controle,por que não virar uma liga e trabalhar em conjunto,efetivamente? A dificuldade é convergir todos os clubes a pensarem da mesma forma a partir do momento que se tem dois blocos com recursos diferentes,com sua principal receita vindo de origens diferentes,com valores diferentes. Talvez você tenha uma dificuldade em conseguir fazê-los convergir para um sistema de controle cuja origem da principal receita não é equivalente. Nesse ponto,talvez a gente tenha um empecilho para aplicar isso. Então,quem deveria fazer é a CBF. Criar um órgão à parte,um órgão independente que fizesse esse controle sem viés político.
Um cenário de pré-regulação seguido por um de regulação financeira poderia gerar uma corrida às SAFs brasileiras?
Acho que sim. Um dos grandes problemas para se convencer investidores,especialmente estrangeiros,a olhar o mercado brasileiro,é a falta de regulamentação. Seja de liga ou de controle financeiro. Por pior que seja o controle financeiro na Europa,e aí existem sempre críticas de que muitos clubes não são sancionados e que conseguem ultrapassar as regras e não serem punidos,ainda assim,o fato de existirem regras dá mais segurança para o investidor que ele está entrando em um ambiente mais organizado. Ele não vai competir com um clube que deve muito,que não paga ninguém,e ainda assim está contratando atleta atrás de atleta. Acho que o controle financeiro vai valorizar o produto como um todo,para que no médio prazo você tenha mais interessados em SAFs do que nós temos hoje,nas quais criou-se um hiato. Depois daquele primeiro boom,tivemos alguns pequenos movimentos,com Coritiba e Atlético,e depois migrou-se para um ambiente menor,para Série C,Série D,campeonatos estaduais,clubes pequenos com outro perfil. Para voltar a ter investimento e interesse em clubes de Série B mais relevantes,em Série A,talvez o fair play financeiro seja um indutor desse processo.
As redes de clubes são o grande desafio regulatório do fair play na atualidade?
Acho que o próximo passo é tentar controlar as movimentações dentro dos grupos. Você tem clubes em diversos países que operam sob diversos modelos de controle. Quem faz esse controle maior? Eu posso até falar que a Uefa deveria fazer o controle na Europa,mas num clube no Brasil,a Uefa não tem jurisdição. Quem deveria fazer esse controle maior seria a Fifa. Só que a Fifa está de certa forma distante do dia a dia dos clubes. Temos Fifa,Uefa,Conmebol,CBF,federações,ligas. Ou seja,o que precisa ser estruturada é uma visão de fato homogênea do mercado para controlar algumas coisas,seja os processos de MCOs,que têm essas movimentações todas que acabam gerando facilidades de operação e de burla de regras locais,seja em gestão de dinheiro sem fim,como se vê no mercado árabe,por exemplo. Por que o Fundo Soberano do Arábia Saudita pode gastar um bilhão e meio de euros em dois anos contratando jogador contra mercados que não têm essa capacidade de investimento?
Gianni Infantino,presidente da Fifa — Foto: Franck FIFE / AFP
De alguma forma,teria que ter uma visão global para conseguir formalizar esse tipo de controle. Todo mundo está atento,mas ainda muito distante de uma unificação de entendimento de quem controla e como controla. Mas sem dúvida,esse é o próximo passo,à medida que as federações na Europa vão consolidando o ponto de vista de controle na visão da Uefa,de que mercados como o sul-americano daqui a pouco começarão a ser um pouco mais controlados do ponto de vista financeiro. O passo seguinte é um controle mais amplo e global sobre os MCOs.
© Reportagem diária do entretenimento brasileiro