Bandeira do Botafogo é estendida na areia da praia — Foto: Mauro PIMENTEL / AFP
GERADO EM: 01/12/2024 - 22:40
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A recepção da torcida ao Botafogo campeão da Libertadores no último domingo,na praia de Botafogo,foi,para além da festa,um reencontro do clube homônimo com o seu bairro. Após quase três décadas sem um grande título,o clube de General Severiano conquistou a Libertadores e,ainda no Monumental de Nunez,palco da épica final contra o Atlético-MG,sua torcida passou a ironizar o bem humorado grito de que “Botafogo é bairro”,comum nas torcidas rivais,em referência à falta de glórias no passado recente.
— É o bairro com a vista mais bonita da América — gritava um torcedor,enquanto comemorava o título inédito ontem,em Botafogo.
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Curiosamente,o alvinegro conquistou o maior título de sua história em Buenos Aires,uma cidade que costuma valorizar ao máximo a relação de seus clubes com seus bairros de origens,algo que,além de nunca ter sido tão forte,se perdeu na cultura do futebol brasileiro nas últimas décadas.
O próprio estádio da conquista,que leva em seu nome popular o bairro do River Plate — Monumental de Nunez —,mostra a importância desta relação em Buenos Aires. O River é originário de La Boca,casa do seu maior rival,o Boca Juniors. Se mudou para a parte norte da capital Argentina e,por isso,passou a ser conhecido pelo apelido de Millionarios,que vem do fato de que Nunez é um local de moradores mais abastados.
— A gente tem que entender um pouquinho as diferenças da sociedade de Buenos Aires,com a sociedade carioca no começo do século XX. Enquanto o Brasil era um país recém-saído da escravidão,com uma estrutura social muito desigual,a Argentina já estava se configurando como uma nação que tinha uma proposta liberal mais igualitária. Era uma sociedade menos desigual do que a brasileira,o que se configurou numa lógica de desenvolvimento do futebol que foi mais horizontal — explica o historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira,que estudou o futebol como parte da formação da sociedade carioca no início do século passado.
Tais clubes sociais permitiam aos moradores ampla participação,gerando uma ligação mais orgânica de torcedores com os clubes dos seus bairros de origem,ainda que alguns se destacassem mais que os outros nos campeonatos de futebol.
— Na sociedade brasileira,marcada pela desigualdade,o caminho foi bem diverso. A implementação do futebol no Rio de Janeiro foi feita a partir de certos círculos sociais restritos que tentaram fazer do futebol um símbolo de distinção. Os clubes formados pelas elites da cidade é que fizeram com que no Rio,ao contrário de Buenos Aires,desde muito cedo tenha se afirmado uma lógica das pessoas torcerem por um clube que não tem nada a ver com o local que eles moram — completa Pereira.
Para Luiz Antônio Simas,escritor e professor de História,a separação entre os clubes brasileiros e seus bairros de origem tem a ver com a forma como a cidade se desenvolveu.
— No Rio,muitos clubes locais foram minguando,enquanto os clubes que transcenderam aos seus bairros de origem conseguiram perseverar. Tem muito a ver com uma certa decadência,no caso do Rio,da própria sociabilidade de bairro. Porque você vai reparar que não é só o clube,mas é a barbearia de bairro,é o açougue de rua... A cidade é pensada muito dentro de uma lógica que ou é do condomínio,ou é do shopping,ou é do carro. O Botafogo tinha uma identificação com o bairro que,de certa maneira,foi sendo perdida. Botafogo sofreu um impacto muito grande da especulação imobiliária. É um dos que mais sofrem com esse impacto — analisa o pesquisador.
Se o bairro mudou,o Botafogo agora também é outro. Não só pelo título recém conquistado da Libertadores,mas pela implementação da SAF em 2022,que afasta ainda mais o clube social,com sua lendária sede em General Severiano,casarão icônico do bairro,com o futebol,hoje todo administrado do Engenho de Dentro,onde fica o Estádio Nilton Santos. Mas as cenas da enseada de Botafogo lotada,do Manequinho em frente ao clube finalmente vestido e com faixa de campeão,mostram que passado e presente costumam caminhar juntos,algo típico do Botafogo.
— Me parece que a relação do clube Botafogo com o bairro é uma relação mais simbólica do que uma relação prática,efetivamente barrial,como acontece na Argentina — conclui o historiador Leonardo Miranda.
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