O cineasta americano Francis Ford Coppola,em São Paulo — Foto: Marina Atallah/ O2 Play
O cineasta americano Francis Ford Coppola sempre se identificou com Cassandra,a princesa troiana que,conta a mitologia grega,antecipava as desgraças futuras. A tragédia é que ninguém acreditava nela. Aos 85 anos,o diretor de “O poderoso chefão” e “Apocalypse now” diz que “certa capacidade de prever o futuro” (assim como a “imaginação viva”) é um de seus talentos,como atesta seu novo filme,“Megalópolis”,que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira.
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Ambiciosa estética e narrativamente,a superprodução não economiza nos efeitos especiais nem em tramas paralelas. E tudo começa com uma profecia. O narrador,interpretado por Laurence Fishburne,avisa que a “República americana não é tão diferente da Roma Antiga” e,como aquela,pode cair,“vítima do insaciável apetite de poder de alguns homens”. Após um período marcado pela insatisfação popular com a desfaçatez das elites (ocupada em rivalidades internas),a República Romana caiu no século I a.C.,tornando-se um império.
Nathalie Emmanuel e Adam Driver em cena de "Megalópolis" — Foto: O2 Play/ Divulgação
De passagem pelo Brasil (ele receberá o Prêmio Leon Cakoff da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo),Coppola disse que já apontava as semelhanças entre os destinos trágicos de Roma e dos Estados Unidos duas décadas atrás,quando começou a pensar no roteiro.
— Me perguntavam: “por que falar disso?”. Mas agora está claro que está prestes a acontecer nos EUA o que aconteceu em Roma: corremos o risco de perder nossa República e terminar com um ditador. Pode acontecer na semana que vem — diz o cineasta,referindo-se às eleições da próxima terça-feira (5). — Está acontecendo em todo o mundo,é uma nova forma de estupidez que chamamos de fascismo.
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Coppola,porém,insiste que “Megalópolis” (que tem o subtítulo “uma fábula”) não é um filme político,mas “parapolítico”:
— Política é acúmulo de riqueza e poder. A discussão que eu proponho está acima disso,é sobre o que é uma boa sociedade.
No filme,esse debate é capitaneado por Cesar Catilina (Adam Driver),arquiteto que projeta uma cidade futurista,onde,diz ele,todos voltarão a sonhar. Cesar ganhou um Prêmio Nobel por inventar um material revolucionário,o Megalon,para construir sua utopia urbana e é capaz de parar o tempo. Coppola conta que o personagem é parcialmente inspirado no ex-governador do Paraná Jaime Lerner,responsável por reformas urbanas em Curitiba que impressionaram o cineasta,que visitou a cidade em 2003.
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Cesar Catilina pertence a uma família de banqueiros,cujo patriarca,seu tio Hamilton Crassus III (Jon Voight),vive em pé de guerra com Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito),o prefeito de Nova Roma (a Nova York pouco disfarçada onde se passa a trama). Ainda enlutado pela morte da mulher,o Cesar de Coppola se envolve com Julia (Nathalie Emmanuel),a filha do prefeito. Seu maior rival é seu primo Clodio (Shia LaBeouf),que desponta como líder populista por ter certas características como ausência de limites,ser “meio louco” e um “entertainer” (espécie de animador de plateias). Catilina,aliás,é o nome de uma família romana que articulou um golpe de estado no século I a.C.
Ao lado da crítica ao reacionarismo,Coppola não quis fazer um filme “woke”,isto é,de acordo com determinada cartilha que se pretende progressista em Hollywood. Tanto é que escalou atores “cancelados”,como Voight,pai de Angelina Jolie e um apoiador de Trump,e LaBeouf,que já foi acusado de assédio pela ex-namorada.
— Não importa qual é a sua opinião política,todos somos membros da família humana e devíamos estar trabalhando juntos para criar um mundo melhor em vez de perder tempo com guerras sem sentido — defende o diretor,que já venceu cinco Oscar e pede chá de camomila entre uma entrevista e outra.
Francis Ford Coppola e Adam Driver nos bastidores de "Megalópolis" — Foto: O2 Play/ Divulgação
Embora a trama de “Megalópolis” tenha ocorrido ao cineasta há duas décadas,desde o início dos anos 1980 ele já aventava um projeto no qual pudesse explorar seu estilo,burilado no desenrolar de décadas,e que ele define como “uma busca pelo poético até o limite do abismo”. Curiosamente,essa parece a descrição de uma das primeiras cenas de “Megalópolis”,em que César se equilibra no topo de um edifício enquanto contempla a silhueta urbana de Nova Roma.
A ambição estética de Coppola,no entanto,não bastou para chamar atenção do público. “Megalópolis” decepcionou nas bilheterias dos EUA e do Canadá,onde estreou em 27 de setembro. No primeiro fim de semana em cartaz,arrecadou apenas US$ 4 milhões. O filme custou US$ 120 milhões. Suspeitando que “Megalópolis” não atrairia multidões aos cinemas,nenhum grande estúdio hollywoodiano se propôs a financiá-lo e Coppola vendeu parte de sua vinícola na Califórnia para tocar o projeto.
O New York Times noticiou a decepção na bilheteria,mas fez uma ressalva pertinente: já não é mais tão fácil fabricar um arrasa-quarteirão como nos anos 1980,época em que havia mais salas de cinema,menos opções de entretenimento e os estúdios apostavam em filmes capazes continuar meses em cartaz.
Hoje,a venda de ingressos nos EUA é 46% menor que há 20 anos e espera-se retorno rápido. Filmes que não lotam cinemas imediatamente saem de cartaz. Até agora,“Megalópolis” acumulou US$ 12,5 milhões em ingressos vendidos no mundo todo (US$ 7,6 milhões nos EUA),de acordo com o banco de dados IMDb.
Nos anos 1970,Coppola e outros então jovens cineastas como Martin Scorsese e Steven Spielberg salvaram Hollywood de uma crise profunda que remontava à década anterior. Hoje,ele vê as dificuldades de “Megalópolis” como sintoma de uma nova crise no sistema de produção e distribuição de filmes dominado por grandes estúdios.
— Duas instituições estão morrendo. Uma delas é o jornalismo. Isso fica claro quando lemos declarações atribuídas a fontes que ninguém sabe quem é. Isso é desespero,é caçar cliques para sobrevier. O jornalismo,ele precisa renascer. Hollywood também está morrendo. Os estúdios só se preocupam se o filme vai dar lucro,não se é bom ou ruim — reclama Coppola. — Eles são os donos da linha de produção,controlam quantas estrelas vão atuar num filme,o que dizem o Rotten Tomatoes e CinemaScore,e assim convencem o público a ir ao cinema ou não. É claro que “Megalópolis” não tem como concorrer com “Homem-Aranha 6” ou sei lá o quê.
Ainda na área do jornalismo,Coppola foi acusado,em publicação da revista Variety,de comportamento inapropriado durante as filmagens. Segundo a acusação,o diretor teria puxado figurantes para o seu colo e tentado beijá-las. Uma delas,Rayna Menz,afirmou que ele só queria “mostrar o espírito da cena” — e,de fato,há no filme uma sequência de “pão e circo”,à moda romana,na qual uma diva pop supostamente virgem canta e dança como se estivesse em um cabaré. Outra figurante,Lauren Pagone,disse ter ficado desconfortável com o comportamento de Coppola,que está processando a revista e pede uma indenização de US$ 15 milhões.
Parte da crítica também torceu o nariz para “Megalópolis”. Houve reclamações de atuações irregulares e de pontas soltas deixadas pelo filme,que propõe várias discussões (dos impasses do projeto civilizatório à relação dos artistas com o tempo) que são mais ou menos abandonadas pelo caminho,eclipsadas pela profusão de efeitos especiais e referências literárias e filosóficas.
Coppola dedicou “Megalópolis” à mulher,Eleanor,morta em maio,aos 87 anos. Ele lamenta que falatório sobre o mau desempenho do filme tenha abafado as discussões propostas,como a busca por uma nova utopia capaz de orientar a construção de um futuro mais solidário. No entanto,dadas as proporções romanas da crise,ele não vê como a situação poderia ser outra.
— Só se importam com filmes sem qualquer mensagem,cujo único objetivo é o lucro — diz ele,antes de avisar que,mesmo que não lhe deem ouvidos,não vai parar de profetizar. — Vou continuar fazendo filmes,já encontrei o meu estilo e não sei fazer outra coisa.
© Reportagem diária do entretenimento brasileiro