Trégua no Líbano: Moradores do sul do país começam a retornar para área de onde foram deslocados — Foto: Anwar Amro / AFP
GERADO EM: 27/11/2024 - 20:00
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A estrada que leva ao sul do Líbano ficou congestionada por carros e caminhonetes sobrecarregadas logo nas primeiras horas de quarta-feira,com milhares de libaneses iniciando o esperado retorno para suas casas,graças a um cessar-fogo estabelecido após dois meses de guerra aberta entre Israel e o grupo xiita libanês Hezbollah. Em vigor desde as 4h locais (23h de terça-feira pelo horário de Brasília),a trégua interrompe temporariamente um conflito que deixou milhares de mortos e mais de um milhão de deslocados no Líbano. Mas apesar do alívio pela volta — que começou sob um clima de tensão e restrições de deslocamento —,o retorno ocorre em meio a um cenário de destruição generalizada,com incertezas sobre a manutenção do cessar-fogo e sobre as medidas de ajuda para a reconstrução das áreas mais afetadas pelos bombardeios.
Contexto: Israel anuncia acordo de cessar-fogo com o Hezbollah no LíbanoEntenda: Cessar-fogo entre Israel e Hezbollah é baseado em resolução de 2006 e prevê forças do Líbano e da ONU na fronteira
Poucas horas após o acordo entrar em vigor,famílias deslocadas começaram seu movimento de volta. Motoristas cantavam e buzinavam enquanto dirigiam,com malas,colchões e cobertores empilhados nos tetos dos veículos. Muitos circulavam de moto ou se apoiavam nas janelas dos carros,empunhando as bandeiras amarelas do Hezbollah e gritando slogans enaltecendo Hassan Nasrallah,seu líder emblemático,que foi morto em setembro em um ataque israelense.
Em uma padaria ao longo da rodovia,funcionários distribuíram bandeiras libanesas e pequenos biscoitos com panfletos que diziam "Sorria,dias melhores estão chegando" para os clientes. Músicas do cantor libanês Nouhad Wadie Haddad,conhecido como Fairuz,explodiam nos alto-falantes.
Cessar-fogo no Líbano começa com retorno de população ao sul do país
— As músicas que estamos tocando hoje são especialmente para esta ocasião — disse ao New York Times Abdullah Daher,gerente da padaria Al Forno. — Há uma semana,eu não poderia imaginar que esta guerra acabaria. Agora,veja,todas essas pessoas estão voltando para casa.
Hanna Trad,39 anos,teve de abandonar sua residência em Maarakeh,uma vila no sul do Líbano,no final de setembro e passou os últimos dois meses em uma escola transformada em abrigo em Beirute com seu marido e três filhos. Ela ouviu que muitos de seus vizinhos foram mortos em um bombardeio e que as janelas de sua casa foram completamente quebradas.
Sequelas: Com trégua em vigor,conflito entre Israel e Hezbollah deixa mais de 3,3 milhão de deslocados
— Finalmente podemos ir para casa. Estamos tão felizes,graças a Deus — disse Trad. — Eu não achava que conseguiria.
Mas o cenário da volta também é desolador. Muitos encontraram quarteirões inteiros transformados em escombros,alvos de bombardeios passados e recentes,e com fumaça ainda subindo após os intensos ataques israelenses na véspera.
Em 2006,países do Golfo como Catar,Kuwait e Arábia Saudita financiaram a reconstrução do Líbano após a guerra entre Hezbollah e Israel,mas não demonstram disposição para repetir o apoio agora.
Homens limpam destroços em local de bombardeio israelense na cidade de Aito,no Líbano — Foto: JOSEPH EID / AFP
Segundo o Banco Mundial,os danos à habitação no Líbano estão estimados em US$ 2,8 bilhões,com mais de 99 mil unidades habitacionais parcial ou totalmente destruídas. Na capital,ataques israelenses derrubaram 262 edifícios,sobretudo no subúrbio sul,de acordo com o Laboratório Urbano da Universidade Americana de Beirute. Os danos se estendem também às áreas no Vale do Bekaa e no sul do Líbano,regiões onde o Hezbollah tem grande influência e onde cerca de um milhão de pessoas viviam antes do conflito se intensificar há mais de um ano.
Ainda segundo o Banco Mundial,o PIB do Líbano deve contrair 5,7% em 2024,em comparação com uma estimativa de crescimento de 0,9% antes do conflito.
No coração do subúrbio de Dahieh,fortemente bombardeado no sul de Beirute,Rayane Salman,de 25 anos,relatou à rede britânica BBC como foi encarar a pilha de escombros que ela antigamente chamava de casa.
— Minha família passou a vida construindo isso. Moramos aqui por 25 anos e agora tudo se foi — disse ela.‘Não há local seguro’
'Não há local seguro': Moradores de Israel deslocados pelo conflito com o Hezbollah veem cessar-fogo com ceticismo
À Reuters,o libanês Zahi Hijazi,67 anos,visitou seu apartamento danificado nos subúrbios ao sul de Beirute,lembrando que a guerra havia destruído o prédio pela segunda vez.
— Israel atingiu este prédio em 1982,ele foi todo demolido. Após 13 anos,nós retornamos e o reconstruímos — ele disse,examinando vidros quebrados e móveis quebrados. — As economias de uma vida inteira... Tudo destruído.
Outros libaneses,como Ismael Faris,de 52 anos,destacaram que não têm para onde ir agora:
— Todos os vidros,as molduras das janelas e as portas se foram — disse ao NYT. — Não há como voltarmos agora e não há como encontrarmos uma nova casa.
O movimento de retorno teve início apesar dos alertas do Exército israelense contra a volta imediata a algumas áreas e do toque de recolher imposto no sul do Líbano,válido até a manhã de quinta-feira. O Exército libanês também havia pedido para que os civis esperassem pela retirada completa das tropas israelenses,enquanto parlamentares libaneses passaram uma mensagem contrária,orientando a população a retornar imediatamente.
— Eu os convido a retornarem para suas casas... retornarem para suas terras — disse na quarta-feira o presidente do Parlamento libanês,Nabih Berri,apesar dos avisos em contrário do Líbano e dos militares de Israel.
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Tais divergências na comunicação levaram a incidentes em diferentes localidades logo após o início da trégua,quando forças israelenses dispararam diante da aproximação de civis,fato confirmado posteriormente pelo Exército. Não houve relatos de feridos,mas,segundo o ministro da Defesa,Israel Katz,as tropas deveriam atuar "agressivamente" caso identificassem riscos. Fontes de segurança apontaram que a saída dos soldados israelenses vai ocorrer de forma gradual,à medida que as garantias de segurança são implantadas.
Aprovado por 10 votos a 1 no Gabinete israelense,o acordo,que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse que poderá ser ampliado a depender "do que acontecer no Líbano",baseia-se em um plano dos Estados Unidos para uma trégua de 60 dias,durante a qual o Hezbollah e o Exército israelense devem se retirar do sul do país,na fronteira com o norte de Israel,e permitir o envio do Exército libanês para a região. O pacto inclui a criação de um comitê internacional para supervisionar a implementação do acordo.
O Hezbollah declarou vitória sobre Israel após o início da trégua,afirmando que seus combatentes estão prontos para enfrentar possíveis ataques israelenses. A declaração,a primeira desde o cessar-fogo,destacou a "vitória divina" como aliada da causa justa.
O acordo significa um "novo começo" para o Líbano,comemorou na terça-feira o presidente americano,Joe Biden,enquanto o Irã,principal apoiador militar e financeiro do Hezbollah e arqui-inimigo de Israel,celebrou o "fim da agressão". Já o primeiro-ministro libanês,Najib Mikati,disse esperar que o acordo abra "uma nova página" na História do país e que,no processo,seja eleito um presidente da República,cargo vago há mais de dois anos.
Na quarta-feira,o Exército libanês anunciou que já começou a "reforçar sua presença" no sul do país,na região ao sul do Rio Litani,a cerca de 30 km da fronteira com Israel. Por sua vez,o deputado do Hezbollah Hassan Fadlallah afirmou que o movimento cooperará com o Estado libanês para reforçar o deslocamento do Exército no sul,garantindo não ter "armas visíveis" nem "bases" na região. A ONU também afirmou que está adaptando suas operações à "nova situação".
O acordo,entretanto,deixa várias questões pendentes que ameaçam fazer com que ele seja,na prática,mais um intervalo na guerra do que uma paz duradoura. A principal delas é justamente o fato de que a trégua é sustentada por uma carta de garantias de Washington a Israel que diz que o Estado judeu tem permissão para atacar o Líbano não apenas em retaliação a ofensivas diretas,mas sempre que considerar que o Hezbollah descumpriu o acordo.
As hostilidades entre Israel e o Hezbollah começaram no dia seguinte ao ataque do Hamas ao Sul de Israel em 7 de outubro de 2023,que deixou cerca de 1,2 mil mortos,além de mais de 250 reféns — desses,97 seguem mantidos em cativeiro na Faixa de Gaza e 34 foram confirmados como mortos. Desde então,o grupo xiita abriu uma frente contra Israel em apoio ao seu aliado palestino,com ataques quase diários na fronteira entre os dois países.
Depois de quase um ano,Israel lançou uma campanha de bombardeios maciços contra o movimento islamista em 23 de setembro e enviou tropas terrestres para o sul do Líbano uma semana depois,abrindo uma nova fase no conflito.
Segundo o Ministério da Saúde libanês,mais de 3,8 mil pessoas morreram,a maioria civis,e 15,8 mil ficaram feridas no país desde outubro de 2023,a maioria a partir de setembro deste ano. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef),mais de 200 crianças foram mortas e 1.100 ficaram feridas no país apenas nos últimos dois meses.
Já o número exato de baixas do Hezbollah não é claro. Segundo a Reuters,o grupo havia reportado 500 mortes entre seus membros antes da ofensiva de Israel em setembro,mas depois não atualizou mais os números. De acordo com o Instituto de Estudos de Segurança Nacional da Universidade de Tel Aviv,o número total de mortes do Hezbollah é estimado em 2.450.
Equipe da Cruz Vermelha retira corpo de local bombardeado por Israel em Aito,no norte do Líbano — Foto: Fathi aL-Masri/AFP
Quanto aos deslocados pela guerra,apenas em setembro,mais de 1 milhão de pessoas deixaram suas casas no Líbano. Hoje,esse número chega a 1,3 milhão,segundo a Agência da ONU para Refugiados (Acnur),incluindo 510 mil que fugiram para a Síria. Mais de 870 mil são deslocados internos,muitos já desabrigados várias vezes desde outubro de 2023.
Em Gaza,onde o conflito já dura mais de um ano e que parece longe de ter um fim,a ofensiva israelense já deixou pelo menos 44 mil mortos,a maioria mulheres e crianças,segundo dados do Ministério da Saúde do território,considerados confiáveis pela ONU.
© Reportagem diária do entretenimento brasileiro