Cela de Tiradentes — Foto: Élcio Braga
Você sente falta de ar só em olhar. As celas nas prisões no período colonial no Brasil eram estreitas,escuras e úmidas,muitas vezes sem área de ventilação. Havia um buraco no chão ou balde para as necessidades. Nem à cama ou ao banho de sol o preso tinha direito. Só era possível ver alguma luz pelas grades espessas e intransponíveis da porta. Duas dessas celas preservadas,raramente vistas e de acesso proibido,e a cela onde Tiradentes passou os últimos três anos de vida foram visitadas pelo GLOBO na Fortaleza de São José da Ilha das Cobras,que completa 400 anos em outubro.
Celas angustiantes,túneis e canhões nos 400 anos da Fortaleza de São José
A Fortaleza de São José fica na parte mais alta da Ilha das Cobras,na Baía de Guanabara,entre a Praça Quinze e o Museu do Amanhã:
— Fortalezas não eram prisões,mas eram muito usadas como tal. As celas na Ilha das Cobras seguem o padrão. Logo na entrada,havia um corpo da guarda,um cômodo com janela,e do lado oposto ficava a prisão propriamente dita,bem perto dos sentinelas — observa o historiador Adler Homero,do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e maior especialista em fortificações no Brasil.
Entrada da carceragem do século XVII: presos ficavam confinados em duas minúsculas celas — Foto: Marinha do Brasil
É ligada ao continente pela Ponte Arnaldo Luz,que se conecta com a Avenida Rodrigues Alves,no Centro do Rio. A fortaleza engloba os comandos Geral,de Pessoal,e de Material do Corpo de Fuzileiros,o Batalhão Naval e a Companhia de Polícia. A ilha,porém,expandida com aterros,sedia outras unidades da Marinha,como o Arsenal,o Hospital Central e o Serviço de Documentação.
Mapa de localização da Ilha das Cobras — Foto: Renata Martins
As duas celas históricas,mesmo desativadas,não estão abertas à visitação por ficarem dentro do Presídio da Marinha,onde ficam os presos da corporação. A segurança e o acesso são rigorosamente controlados. No entanto,as duas áreas de confinamento do período colonial não são tombadas.
— Aqui na ilha a gente tem só dois bens tombados pelo Iphan. O pórtico da fortaleza,que foi feito em 1736,quando os três fortes construídos no local foram unificados,e a fachada da Capela de São José,datada do início de meados do século XVII,aC primeira efetivamente militar do Brasil — observa o capitão de corveta Esley Rodrigues,oficial encarregado do Museu do Corpo de Fuzileiros Navais.
A cela onde ficou o inconfidente Joaquim José da Silva Xavier,o Tiradentes,está aberta à visitação. Fica na área do Hospital Central da Marinha,onde havia o forte mais antigo na ilha. O alferes ficou preso ali por 1.072 dias,antes de ser levado para a antiga Cadeia Pública e enforcado quatro dias depois,em 21 de abril de 1792.
— Os visitantes ficam muito impressionados de ver a cela do Tiradentes. Quem entra ali sente realmente a agonia de um presidiário da época colonial. Era algo bem austero para o presidiário só viver. Ele ia esperar um julgamento ou a morte — diz Esley.
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Mapa da Fortaleza da Ilha das Cobras de 1713,de João Massé. Crédito: Serviço de Documentação da Marinha
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Ilustração da Ilha das Cobras em 1765 — Crédito: James Forbes / Biblioteca Nacional
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Prate das muralhas da Fortaleza de São José. Foto: Revert Henrique Klumb / Biblioteca Nacional
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Entrada da antiga carceragem do século XVII na Fortaleza de São José — Foto: Fortaleza de São José / Marinha do Brasil
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Prisão do período colonial na Ilha das Cobras — Foto: Fortaleza de São José / Marinha do Brasil
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Pórtico de entrada da antiga Fortaleza de São José — Foto: Fortaleza de São José / Marinha do Brasil
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A fachada da Capela de São José é tombada pelo Iphan — Foto: Élcio Braga
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Comandante Esley Rodrigues mostra a maquete com os três fortes que protegiam a cidade a partir de 1713 — Foto: Élcio Braga
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Quartel do Corpo de Fuzileiros Navais bombardeado durante a Revolta da Armada em 1894 — Foto: Reprodução / Revista Fon-Fon
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Fotografia aérea da Ilha das Cobras — Foto: Jorge Kfuri / Serviço de Documentação da Marinha
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A Ilha das Cobras vista a partir da Orla Conde,no centro do Rio de Janeiro — Foto: Élcio Braga
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Muralha da antiga Fortaleza de São José construída para defender a cidade do ataque de franceses e piratas — Foto: Élcio Braga
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O cômodo escuro possui apenas duas pequenas aberturas gradeadas no alto das paredes para circulação de ar. O prisioneiro dormia no chão.
— Os presos,quando recebiam,usavam esteiras,assim como a guarnição. Mais tarde,no século XIX havia barras (catres) de madeira,mais afastados da umidade do solo. Esse tipo de prisão foi desativado apenas no início do século XX — conta Adler.
Dá até para imaginar o angustiado alferes,já condenado,segurando as barras da cela. Na época,não existia a ideia de ressocialização. Era só castigo.
— Um prisioneiro não tinha direito a banho de sol. Dependendo das condições de prisão,podia ser preso "com o uso da fortaleza",no sentido que ficaria solto dentro da fortificação,só se recolhendo para dormir,mas não creio que fosse o caso de Tiradentes. Isso se aplicava normalmente a presos que eram autoridades,oficiais e assim por diante — assinala o historiador.
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No entanto,não havia naquele período distinção na hora das refeições do prisioneiro.
— O padrão da alimentação dos prisioneiros era o mesmo dos soldados: três refeições,à base de carne seca,carne verde (fresca),farinha,feijão e toucinho. Há uma lei de 1828 definindo qual era a ração que tinha que ser fornecida — acrescenta Adler.
Ilha das Cobras abriga o Corpo de Fuzileiros Navais e o Arsenal de Marinha — Foto: Élcio Braga
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O medo de uma invasão holandesa pairava sobre o recém-nascido Rio de Janeiro. Era o ano de 1624,e o inimigo já havia ocupado a então capital da colônia,Salvador,na Bahia. Os muros da cidade foram reforçados,no Morro do Castelo. Para defender a vila,por ordem do governador da Capitania do Rio Martim Correia de Sá,ergueu-se uma fortificação com o nome de São José,na Ilha das Cobras.
Mais tarde,o então governador Salvador de Sá determinou a construção de nova fortaleza,a de Santa Margarida,no lugar da antiga,obra concluída em 1639. Para defender a parte baixa da ilha,voltada para a Ilha do Rato (atual Fiscal),no governo de D. Álvaro da Silveira e Albuquerque,construiu-se o Baluarte de Santo Antônio,em 1709.
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Mesmo com o reforço,a fortaleza caiu nas garras do corsário francês René Duguay-Trouin,em 1711. O invasor ameaçou incendiar a vila de 12 mil habitantes e exigiu um alto valor como resgate. Muitos moradores se refugiaram no interior. O drama terminou quando Duguay-Troin recebeu 600 quilos de ouro e outros produtos,deixando o Rio para trás.
— Quando Portugal retomou a ilha,construiu-se uma outra fortificação,o Forte do Meio (Pau da Bandeira). Quando os fortes foram unificados em 1736,adotou-se o nome de Fortaleza do Patriarca São José da Ilha das Cobras. Esse nome foi alterado só no século XIX para Fortaleza de São José da Ilha das Cobras — explica o comandante Esley.
A Ilha das Cobras era uma posição estratégica para dominar a cidade,o que incentivou a ampliação da presença dos militares. Em 1910,após negociação com a ordem,a Marinha assumiu a ilha por completo.
— A fortaleza da Ilha das Cobras era extremamente importante. Defendia o ancoradouro principal da cidade: o poço situado em frente à Praça Quinze,entre as ilhas de Villegagnon e das Cobras. O Espaço Cultural da Marinha ocupa o que eram as Docas da Alfândega,logo atrás da Alfândega,que é a Casa França-Brasil. Passava por ali tudo o que era importado e exportado pelo Rio de Janeiro,o principal porto do país até o século XX — conta Adler Homero.
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O próprio Duguay-Troin utilizou a ilha para subjugar o Rio. Fatos históricos posteriores demonstraram a grande vantagem para quem a dominasse durante um conflito.
— O corsário Duguay-Troin construiu uma bateria no local para bombardear a cidade,e aconteceria de novo na Revolta da Armada,em 1893 e 1894,e na Revolta dos Marinheiros,em 1910,quando os rebeldes instalaram canhões dos fuzileiros navais para bombardear o Centro — diz Homero.
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Comandante Esley Rodrigues caminha por túnel usado pelos soldados sobretudo durante ataque inimigo nos séculos XVII e XVIII — Foto: Élcio Braga
Em sua obra,o monge e historiador beneditino dom Clemente Maria da Silva-Nigra,que morreu em 1987,explicou que o nome da ilha se deve mesmo ao grande número de cobras ali encontradas no início de sua ocupação.
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Os franceses a chamavam,de Ilha das Cabras,mas segundo o comandante Esley Rodrigues,seria apenas devido a uma questão fonética. Nos mapas dos invasores,a ilha era denominada como "das Cobras".
— No início,era a Ilha da Madeira quando havia sido passada como sesmaria. Depois virou entreposto de escravizados com o mesmo nome. Ilha das Cobras passou a ser a designação quando os monges beneditinos já a ocupavam,a partir de 1589 — conta Esley.
Nos 400 anos da Fortaleza de São José,na Ilha das Cobras,uma nova invasão já é esperada. Só que desta vez serão visitantes. O Museu dos Fuzileiros Navais passa por uma reforma e terá maior área de exposição,como a transformação da antiga cisterna em sala de exposição. Alguns eventos estão sendo preparados para comemorar a data histórica em outubro.
— A data certa ainda não definimos,mas teremos uma grande festa,com um show de luzes e apresentação da Banda Sinfônica do Corpo de Fuzileiros — revela o comandante Esley Rodrigues.
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A Ilha das Cobras fica em frente ao Centro do Rio. No passado,era posição estratégica para a defesa da cidade — Foto: Google Earth
A Brigada Real da Marinha,que originou o atual Corpo de Fuzileiros Navais,passou a ocupar a Ilha das Cobras no início do Século XIX.
— A Fortaleza de São José representa uma das poucas fortalezas do período colonial que ainda funcionam como organização militar. É considerada o solo sagrado do Corpo de Fuzileiros Navais,desde seu retorno da vitoriosa campanha de Caiena,na qual nossas forças derrotaram as tropas de Napoleão,em 1809 — disse o comandante geral do Corpo de Fuzileiros Navais,almirante de esquadra Carlos Chagas.
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Além da cela de Tiradentes,outra atração são dois túneis utilizados pelos soldados para se locomoverem entre as fortificações,sobretudo durante ataque inimigo. Esley Rodrigues reconhece que o fato de o museu e o sítio histórico ficarem dentro de uma unidade militar possa inibir a visitação. Na página da Marinha,o interessado tem todas as informações para agendar a visita pelo telefone (21) 2126-5053. É o passaporte para uma viagem no túnel do tempo do Rio de Janeiro.
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