Ato em Brasília contra o PL1.904 — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.
GERADO EM: 27/08/2024 - 00:06
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As campanhas municipais já em curso evidenciam a polarização entre visões antagônicas de sociedade em torno de temas nacionais,antecipando o pleito de 2026. Uma dessas pautas diz respeito ao aborto legal,ora demonizado com estridência,ora descartado como algo que escaparia à alçada de prefeitos e vereadores. É preciso dimensionar as responsabilidades desses agentes políticos.
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Os municípios têm atuação decisiva nesse tema,uma questão de saúde pública. Hoje,o Estado brasileiro garante acesso ao aborto apenas nos casos de estupro,risco de vida da mãe ou feto anencéfalo. Ainda assim,mulheres e meninas enfrentam obstáculos na rede pública de saúde,incluindo a municipal,para ter acesso à interrupção voluntária da gravidez. Enfrentam o preconceito de profissionais que não reconhecem esse direito ou retardam os procedimentos,revitimizando-as,como tem sido denunciado na imprensa.
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Cabe lembrar que o aborto voluntário no Brasil ainda é regido — pasmem! — por uma lei de 1940. Em 84 anos,as mulheres conquistaram muitos direitos,entraram em massa no mercado de trabalho,superaram os homens na educação escolar,avançaram até na política,mas continuam sem autonomia reprodutiva completa,o que restringe seus direitos individuais,sua dignidade,sua intimidade e sua saúde,direitos garantidos pela Constituição de 1988.
Os efeitos da negação desses direitos resultam numa tragédia diária,especialmente para mulheres mais pobres,com menor escolarização,vulnerabilizadas em razão de raça e etnia,entre outros marcadores de desigualdade. Cerca de 800 mil mulheres passam por abortos inseguros todo ano no Brasil. Dessas,200 mil recorrem ao SUS para tratar sequelas de procedimentos malfeitos.
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS),a situação pode ser ainda mais alarmante,pela subnotificação. Os abortos desse tipo podem ultrapassar 1 milhão por ano. É a quinta causa de morte materna no Brasil.
Outro número assustador é de crianças violentadas — mais de 60% das vítimas de estupro têm até 13 anos. Novamente,temos visto diversos casos em que os agentes públicos impedem ou dificultam o acesso ao aborto legal em tais situações.
Na mais recente investida conservadora,o Congresso Nacional ensaiou votar o “PL do Estupro” (Projeto de Lei 1.904/2024),que equipara o aborto legal em idade gestacional acima de 22 semanas,inclusive em casos de estupro,ao crime de homicídio simples. A proposta — depois retirada de pauta — reacendeu o debate sobre as políticas públicas voltadas à saúde e à justiça reprodutiva. E evidenciou que aumentar a punição às mulheres apenas reforça o já enorme e inaceitável atraso que vivemos.
No fim,mesmo numa disputa municipal,candidato(a)s a cargos públicos precisam discutir,para além de crenças e religiões,suas responsabilidade em relação à garantia dos direitos reprodutivos como questão de saúde pública,de dignidade humana e de respeito ao pluralismo — pilares do Estado Laico Democrático de Direito.
*Jacqueline Pitanguy,socióloga e cientista política,e Leila Barsted,advogada,são coordenadoras da ONG Cidadania,Estudo,Pesquisa,Informação e Ação (Cepia)
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