Joana Vasconcelos em seu ateliê,em Lisboa — Foto: Marcus Sabah
GERADO EM: 07/07/2024 - 04:30
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Em um galpão de três mil metros quadrados,dois andares e um mezanino,60 pessoas trabalham divididas em setores: costura,bordado,escultura,arquitetura e engenharia. Entre os ambientes de pé-direito generoso,obras monumentais colorem o espaço com brilhos,plumas e lantejoulas. À primeira vista,o ateliê de Joana Vasconcelos,às margens do Tejo,em Lisboa,lembra um barracão de escola de samba do Rio. “Todo brasileiro que vem me visitar fala isso”,concorda a artista plástica de 52 anos,ao receber a equipe da Revista ELA. “E faz sentido. O carnaval do Brasil é uma versão tropical,e com forte influência africana,das marchas populares de Portugal. A diferença é que aqui tudo é mais comportadinho”,compara.
Um dos mais importantes nomes da arte contemporânea no mundo,primeira mulher a ocupar o Palácio de Versalhes com sua obra,em 2012,e a mais jovem a expor no Guggenheim Bilbao,em 2018,a portuguesa já perdeu as contas de quantas vezes esteve no Brasil (“Mas nunca fui no carnaval,que é meu sonho. Quem sabe em 2025?”). A próxima visita já está marcada: em setembro,ela vem para o lançamento do catálogo da mostra “Extravagâncias”,no Museu Oscar Niemeyer,em Curitiba. A exposição,em cartaz desde novembro de 2023,foi prorrogada até 29/9 devido ao sucesso (mais de 250 mil pessoas já passaram por lá). “O encantado mundo de Joana transborda os limites da Europa e fascina o mundo”,pontua Juliana Vosnika,diretora-presidente do museu. “Sem dúvida,é uma das maiores artistas em atuação,ao lado de Eva Jospin e Yayoi Kusama. Estamos recebendo visitantes de todo o país,muitos do Rio e de São Paulo.”
A estrela de “Extravagâncias” é a instalação “Valquíria Miss Dior”,criada pela artista para o desfile de outono-inverno 2023/2024 da maison francesa,em fevereiro do ano passado,e que acabou por virar mais um marco em seus 30 anos anos de trajetória. São 7 metros de altura por 24 de extensão na forma de uma escultura que mescla crochê,20 diferentes tecidos e microluzes de LED. A base fica suspensa por cabos de aço,e braços tentaculares tocam o chão. Na opinião da própria Joana,é a mais bela de suas Valquírias,seres fantásticos que povoam o repertório da artista há duas décadas. Inspiradas no mito escandinavo das mulheres enviadas pelo deus Odin,as Valquírias tinham a árdua missão de escolher vencedores e perdedores de uma guerra. “São deusas guerreiras que retratam as múltiplas dimensões da mulher na sociedade”,explica Joana.
Joana Vasconcelos,com look Dior,entre Valquírias criadas para a maison francesa — Foto: Marcus Sabah
A “Valquíria Miss Dior” é uma homenagem a Catherine,irmã de Christian,idealizada a partir de uma conversa com a diretora criativa da marca,Maria Grazia Chiuri. “Quando conheci Joana Vasconcelos,começamos a conversar sobre a figura forte e independente que era a irmã de Monsieur Dior. Catherine foi membro condecorado da resistência francesa (contra a ocupação nazista) e,ao ser libertada da prisão,dedicou a vida a vender flores. Considero-a um modelo de empoderamento. Para Joana,interessada nas histórias de mulheres cujas vidas servem de exemplo,Catherine é uma Valquíria”,diz Maria Grazia. “Ela criou uma peça que tirou o fôlego de todos.”
Diante da excelente repercussão do desfile,a Dior convidou Joana a multiplicar seus seres em uma ocupação artística nas 500 lojas da marca pelo mundo. “Outro dia,um colega artista veio me dizer que é grande ousadia uma pessoa das artes trabalhar com a moda”,lembra Joana,sobre os recorrentes comentários de que sua arte seria “comercial”. Ela rebate,citando grandes mestres. “Então Rubens,Diego Velázquez e Vincent Van Gogh são comerciais? As pessoas vão aos museus para ver os artistas. Isso não tem a ver com ser comercial,tem a ver com a arte de comunicar ou não. A arte não precisa ser erudita,de difícil entendimento. Eu não complico. O que faço tem objetivo direto de comunicar,passar mensagens sobre a identidade da mulher.”
O primeiro marco na trajetória de Joana Vasconcelos foi “A noiva”,um monumental lustre feito com 14 mil absorventes íntimos do tipo OB,de arregalar os olhos do grande público na Bienal de Veneza,em 2005. Antes de chegar lá,a obra foi exibida em diversos espaços alternativos,inclusive na pista de dança da boate Lux,no Bairro Alto,onde Joana chegou a trabalhar como segurança. Nessa época,conheceu gente à beça,como o ator e diretor brasileiro Miguel Falabella. “Ela é uma mulher simples e altamente sofisticada em suas criações. Com a grandeza de quem conhece a extensão do seu universo. Lembrando os tempos de Lux,é mágico pensar em sua história”,diz Miguel.
Recém-formada pelo Centro de Arte e Comunicação Visual e faixa preta em karatê,“pratico desde os 8 anos”,Joana foi trabalhar na noite para ganhar um dinheiro extra em 1998. “Nunca precisei expulsar ninguém,só lidar com alguns frequentadores alcoolizados além da conta”,recorda-se. Ficou,no total,três anos por lá. Em 2001,criou “A noiva” para se inscrever num concurso que levava jovens artistas para uma feira de arte em Madri. “Mas não passei. Os curadores,todos homens,classificaram a peça como ‘suja’. Os tampões eram branquinhos,integrando um trabalho sobre pureza,um questionamento sobre concepções de casamento. Em algumas culturas,havia a lenda de que a mulher que usasse tampão perdia a virgindade”,lembra.
Joana ficou abaladíssima. Até que o empresário Manuel Reis,diretor da Lux,fez o convite para sua ex-segurança expor no fervo da boate. “Era para ficar lá por um mês,mas ficou mais de um ano”,lembra ela. Tempo suficiente para a curadora espanhola Rosa Martinez ver “A noiva” na discoteca e convidar Joana para expor a obra em uma galeria de Barcelona. “Ao longo de 2002,levei o lustre para vários endereços. Comecei a ficar exausta de montar e desmontar aquele candelabro. Levava,em média,três dias para fazer tudo sozinha. Pedi,então,para a Rosa me chamar de novo só quando fosse para um lugar classe A. Ela ficou um ano inteiro sem falar comigo”,recorda-se. No final de 2004,enfim,a curadora voltou a telefonar para Joana,e fez o convite para participar da Bienal de Veneza,que pela primeira vez,em mais de um século,teria uma curadoria assinada por mulheres,entre elas,a própria Rosa. “Foi um momento histórico”,lembra a portuguesa,com poréns. “Não tinha preparado uma estrutura para estar ali nem tinha cartão de visitas. Foi muito duro. Ficava em pé do lado da obra das onze da manhã às sete da noite,e depois voltava para o hotel para chorar de desespero,estava entrando em um novo universo.”
A partir dali,Joana decidiu trabalhar “para deixar de ser conhecida apenas como a artista do tampão”. E conseguiu. “Aconteceu-me de ser algumas vezes ‘a primeira mulher’ a adquirir certo estatuto,como em Versalhes,e sempre me interroguei por que outras artistas não tinham tido essa honra antes. O mundo das artes continua a ser dominada pelos homens. Enquanto mulheres não tiverem as mesmas oportunidades,precisamos seguir defendendo os valores do feminismo.”
Joana Vasconcelos com o vestido "Material Gril",obra de 2015 confronta estereótipos do rosa — Foto: Marcus Sabah
Joana o faz de forma leve,e com humor. Como em “Material Girl” (2015). “É uma obra toda rosa,por tradição a cor da mulher. Só que não é uma peça ‘lilili’,tem intensidade e confronta os estereótipos”,explica. Madonna viu,adorou e chegou a visitar o ateliê — só não levou porque era grande demais (16 metros) até para a sua mansão. “O trabalho vai para uma nova exposição em novembro,na Alemanha”,conta Joana,que usou o look correspondente neste ensaio: o vestido faz parte do acervo guardado no ateliê.
Em sua sala,há camarim com uma coleção de corações,recortes de jornais,caderno de desenho sobre a mesa e uma Poltrona Mickey,feita com bichos de pelúcia,uma das peças mais icônicas do Estudio Campana. “São poucas as obras de outros artistas que olho e sinto uma relação próxima. Outro dia,disse para o Humberto que adoraria ter feito essa cadeira”,conta Joana. A recíproca é verdadeira. “Joana é barroca sem medo de ser kitsch,corajosa e sem freios. Quando vejo uma nova obra dela,fico com ódio de não ter pensado naquela ideia antes”,diverte-se Humberto,que recentemente encantou-se com o “Bolo de noiva” (2023),estrutura de 12 metros de altura,com 25 mil azulejos e 1.200 cupidos,sereias,velas e figuras de Santo Antônio,encomendado pela Família Rothschild. “A obra retrata Portugal,retrata o Brasil. Joana resgata tradições e as contemporiza,dando uma leitura irônica,transgressora”,completa o designer.
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Valkyrie Miss Dior 2023 — Foto: divulgação / Luis Vasconcelos
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Árvore da Vida,2023 — Foto: Divulgação / Didier Plowy
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Solitário,2018 — Foto: Divulgação / Jonty Wilde
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Egeria,2018 — Foto: divulgação / Luis Vasconcelos
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Bolo de Noiva,2023 — Foto: Divulgação
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Be Your Mirror,2018 — Foto: divulgação / Luis Vasconcelos
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A todo vapor,2014 — Foto: Divulgação / Luis Vasconcelos
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Alorna,2013 — Foto: divulgação / Luis Vasconcelos
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Vermelho,2005 — Foto: divulgação / Luis Vasconcelos
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Nectar,2006 — Foto: Divulgação / Daniel Malhão
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Ouro sobre azul,2001 — Foto: divulgação / Luis Vasconcelos
Joana está com a sua maior individual em cartaz no Brasil,em Curitiba
As concepções de Joana sobre o “Bolo de noiva” mudaram com o tempo. Ela se casou em 2005,com um antigo namorado,pai de sua única filha,Alice,de 13 anos. A artista descobriu que estava grávida em 2011,na mesma semana em que foi convidada para expor em Versalhes. “Tinha 39 anos e uma gravidez de risco,por causa da trombofilia. Mas não podia deixar de ir a Versalhes”,conta. Alice nasceu com saúde,foi amamentada no ateliê e levada para a vernissage da mãe na França aos 11 meses. Separada do pai da menina,não pensa em se casar de novo. “É difícil encontrar um companheiro que entenda a dinâmica da minha vida e queira participar dela. Tenho uma forma de estar chamada vida e obra,em que não há separação.”
© Reportagem diária do entretenimento brasileiro