Bia Ferreira: chance de ouro no boxe em Paris-2024 — Foto: Rata
*Boxeadora,em depoimento à repórter Carol Knoploch
Eu não queria me despedir do boxe olímpico sem “a mãe de todas”. O termo surgiu quando disse à minha mãe que estava colecionando medalhas e que elas são como filhas para mim. Ela me perguntou: “Qual é a mais importante?”. A resposta foi automática: “A mãe de todas”. Bom,é o ouro dos Jogos Olímpicos que eu quero,a única medalha que me falta. Por isso,após a prata em Tóquio-2020,não migrei para o boxe profissional,nem iniciei carreira fora dos ringues.
Foi algo que cogitei à época. Estava satisfeita com o que tinha feito até então. Pensei em encerrar a carreira no Japão e trabalhar com o boxe feminino. Quando me tornei atleta de alto rendimento,me desafiei a ir ao pódio das cinco principais competições (foi tetracampeã brasileira,campeã sul-americana,tricampeã pan-americana,bicampeã e prata mundial,além de prata na Olimpíada). Consegui,repeti conquistas e percebi que minha trajetória no olímpico estava se encerrando.
Mas não foi bem assim que aconteceu. Lembro como se fosse ontem porque ainda é vivo em mim. Estava confiante e treinada para a final,contra a irlandesa Kellie Harrington. Tinha boxe para o ouro,como mostrei na luta. Sentia que estava bem,mas a pontuação era a favor dela. Eu não conseguia concordar. Durante a luta,ela caiu duas vezes. Mudei a estratégia,mas continuei agressiva para o decisivo round,o do desempate. Claro que sei que posso perder,mas tive boa performance.
No fim,quando o juiz decretou vitória a ela,o que ela fez? Levantou o meu braço. Eu pedi desculpas ao meu pai e aos brasileiros ao vivo,na TV. Fiquei triste,achava que tinha decepcionado as pessoas que acreditavam em mim. Recebi tanta mensagem de carinho... Gosto quando acreditam em mim. Chorei muito antes do pódio. Meu treinador e amigo,Mateus Alves,foi quem me trouxe à realidade. Eu era a primeira brasileira a chegar à final olímpica e tinha sido prata. Era para desfrutar.
Bia Ferreira: 'Prometi a mim mesma que faria um novo ciclo para gabaritar. Venci o Mundial de 2023,agora vem o grand finale. Estou em Paris para reescrever este final. Depois,migro de vez para o profissional' — Foto: Maria Isabel Oliveira
Bom,mudei os planos. À época,prometi a mim mesma que faria um novo ciclo para gabaritar. Venci o Mundial de 2023,em Nova Dhéli,e agora vem o grand finale. Estou em Paris para reescrever este final. Depois,migro de vez para o profissional.
Neste ciclo,não me desafiei apenas a buscar a “mãe de todas”,mas também tive carreira híbrida — algo inédito. Somente em 2016 o boxe permitiu que profissionais disputassem Jogos Olímpicos. Nunca sonhei com o profissional. Meu sonho era chegar à Olimpíada. Até porque não tinha boas referências do profissional... Mas gosto de desafios,de quebrar tabus.
No Brasil,ser profissional é difícil. Conheço muitos que pagam para lutar. Meu pai,o Sergipe (Raimundo Ferreira),ex-atleta,treinador e bicampeão brasileiro profissional (galo e supergalo),trabalhava e treinava. Saía com marmita na mochila e corria 5km para o trabalho. Ele carregava caminhão de construção. Mas,no calor de Salvador,a comida azedava. Ele não comia. Sofria,ficava machucado... Eu via o quanto era apaixonado. Naquela época,não entendia.
Pós-Tóquio-2020,fui procurada pelo empresário Brian Peters. Nem sabia quem ele era. Fui bem resistente e disse que não tinha interesse no profissional. Até que um dia citei o nome de Brian a Mateus. Ele disse que o cara era um baita empresário. Quando fui ver com quem ele trabalhava... caramba!
Ele é empresário da Katie Taylor,campeã indiscutível (conquistou o cinturão das quatro entidades máximas do esporte: WBA,WBC,IBF,WBO) em duas categorias de peso (leves e superleves). Isso depois de cinco títulos mundiais olímpicos e do ouro em Londres-2012.
Pensei: por que não? Como já tinha dado minha palavra de que continuaria no olímpico,decidimos levar a carreira híbrida. A Confederação Brasileira de Boxe (CBBoxe) me deu todo o suporte para fazer algo que nunca havia sido feito.
É que,mesmo sendo boxe,são esportes distintos. Tanto no mental,quanto no físico. No profissional,é preciso buscar o nocaute. São 10 rounds,a luta exige mais força,e não usamos proteção na cabeça. A luva é bem seca,mais difícil. No olímpico,em três rounds,é preciso ser rápida e buscar pontos.
Tudo é muito diferente: os treinos,o modo de se comportar,até a ansiedade. Em Liverpool,para a luta do cinturão da Federação Internacional de Boxe,me senti uma rainha. É muito massa ser tratada assim. Não tem nada mais ou menos. A Matchroom Boxing me coloca em hotel cinco estrelas,tenho limusine à disposição e camarim. A estrutura de treino é fenomenal. Quando acho que não pode melhorar,sou surpreendida. Fora as roupas — escândalo — com cristais Swarovski.
Bia Ferreira: 'Depois que conquistei o cinturão da IBF,abriu a porteira. Quero colecionar cintos. Este é o primeiro de quatro. Depois,quero descer de categoria e pegar mais quatro. Serei indiscutível' — Foto: Maria Isabel Oliveira
Depois que conquistei o cinturão da IBF,quero descer de categoria e pegar mais quatro. Serei indiscutível. Estou nessa pegada,disposta a treinar e aprender. Antes,porém,tenho uma despedida.
Sou grata ao que o boxe olímpico me proporcionou. Cheguei à seleção “tarde”,com quase 23 anos. Digo que escolhi o melhor trabalho do mundo e não me arrependo de nada,nem do que abdiquei.
Às vezes,a gente não repara na própria história. Todo boxeador tem uma história linda,combustível para superação. E a minha me alimenta. Sei o que passei.
Por isso,hoje agradeço ao meu time — do Mateus a Marisa,psicóloga que me tirou do buraco e me ajudou a domar o monstro dentro de mim; à minha família — nem sei se acreditavam realmente que eu iria conseguir,mas sempre me apoiaram; a Ana Carolina Azevedo,minha mulher — nós nos conhecemos em Tóquio e nos classificamos para Paris,estamos aqui também como casal; e agradeço a todos que acreditam em mim,incluindo minha primeira parceira,Natália Canedo.
Muita gente não sabe,mas,na minha primeira competição,o Brasileiro de 2014,fui desclassificada e depois suspensa por dois anos. Me denunciaram porque lutei muay thai em Juiz de Fora,onde morava. E a Associação Internacional de Boxe Amador não permitia ao boxeador lutar outra modalidade. Durante um ano,a Natália mandava e-mail à CBBoxe para provar que eu não havia lutado profissionalmente. Eu não tinha Bolsa Atleta,recurso nenhum... Continuei treinando,e nos Jogos Abertos do Interior cruzei o caminho da seleção permanente. Fui convidada a participar do projeto Vivência Olímpica em 2016,que contempla todos os esportes,e pude conviver com as melhores boxeadoras do país. Em Paris,quero homenagear todos vocês e gritar ainda no ringue: “Missão dada é missão cumprida”.
© Reportagem diária do entretenimento brasileiro