Só se chega ao Amolar de helicóptero ou por barco de pelo menos seis horas a partir de Corumbá (MS) — Foto: Márcia Foletto
GERADO EM: 15/09/2024 - 03:30
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No chão de areia branca,as pegadas de uma família de onças-pintadas — mãe e dois filhotes — acompanham as deixadas por veados. Rastros revelam que antas,gatos silvestres e cachorros-do-mato também passaram por ali. É intenso o tráfego de animais pela Serra do Amolar,um dos lugares mais remotos do país e um dos principais corredores de biodiversidade do Pantanal.
Cinco meses: Em meio à maior seca da história do país,Minas Gerais concentra todos as cidades onde não chove há mais tempoNão é apenas o clima: Fogo em vegetação só começa com intenção incendiária,alertam especialistas
A serra se tornou um laboratório estratégico de conservação e restauração. Guarda informações que o uso da tecnologia,como a inteligência artificial,ajuda a revelar. E a IA acelera estudos sobre a fauna,num momento em que as queimadas avançam pelo Brasil.
Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera da Unesco,o Amolar impressiona porque é uma terra de encontro de bichos,plantas e paisagens do Cerrado,da Mata Atlântica e da Amazônia.
Nos terrenos mais baixos reina o Cerrado,de manduvis e piúvas (ipês),com pitadas de Amazônia,como os cambarás (Vochysia divergens). Mas,à medida que os morros se elevam,surgem bosques de figueiras e jacarandás com a cara verde-escura da Mata Atlântica. Junto aos cumes,as florestas devolvem o lugar ao Cerrado.
Nesse microcosmo de Brasil vivem onças pintadas e pardas,lobos-guarás,tamanduás,antas,ariranhas,jaguarundis (gatos-mouriscos) e o muito raro e ameaçado tatu-canastra,o maior de todos os tatus e uma das principais vítimas do fogo. Com 80 quilômetros de extensão,a serra vai de Corumbá (Mato Grosso do Sul) a Cáceres (Mato Grosso),e forma um elo entre os pantanais Sul e Norte.
A ela só se chega de helicóptero ou por uma viagem de barco de pelo menos 6 horas,a partir de Corumbá. O santuário pegou fogo pela primeira vez em 2020 e agora volta a ser ameaçado por incêndios na vizinha Bolívia,numa linha de fogo de 60 quilômetros de extensão.
O trabalho de monitoramento da biodiversidade,de restauração de áreas queimadas e de criação de uma brigada para prevenção e combate do fogo é feito pelo Instituto Homem Pantaneiro (IHP),com apoio do Projeto GEF Terrestre e do Ministério do Meio Ambiente,e gestão do Funbio.
A onça-mãe foi chamada de Borboleta,em alusão ao formato das rosetas que pintam sua pelagem. Seus filhotes são Bocaiúva e Carandá,nome de espécies de palmeiras pantaneiras. Cientistas estimam que os filhotes tenham quase dois anos. Nasceram após as queimadas de 2020 e já deviam ter deixado a mãe.
Piscina natural praticamente seca na Serra do Amolar — Foto: Márcia Foletto
Por que seguem com ela é uma pergunta ainda sem resposta,afirma o biólogo Sergio Barreto,pesquisador do IHP que investiga as mudanças de comportamento da fauna causadas pelas queimadas.
Junto de Borboleta costuma estar Acuri,um macho com o nome da palmeira de cujos frutos se alimentam araras,cutias e dezenas de outras espécies de animais. O Amolar foi também o porto-seguro encontrado por Joujou,um macho que chegou em 2020 fugindo do fogo e de caçadores.
Joujou veio na companhia de outro macho,Thiago. Muito feridos,com marcas de balas e queimaduras,os dois foram resgatados e tratados. Mas só Joujou sobreviveu.
As montanhas que chegam a cerca de mil metros de altitude formam vales onde o homem não vai e os bichos se escondem. É nos vales que podem estar muitos dos animais que desaparecem dos campos e das margens dos rios atingidos pelo fogo.
— Conhecer o comportamento é essencial,principalmente em momentos como agora,com seca,calor e fogo. Tudo isso impacta um ecossistema delicado e que vive naturalmente no limite — afirma Barreto.
Acompanhar o cotidiano das onças é só parte da construção da história da natureza frente ao fogo. Dela fazem parte todos os animais. Para acompanha-los,24 horas por dia,olhos humanos não bastam. Há câmaras espalhadas pelo Amolar,num trabalho para identificar espécies,sua abundância e hábitos.
Trabalhando sem cessar e ativada por qualquer movimento,como um simples farfalhar de folhas pelo vento,uma única câmera capta mais 17 mil imagens por mês. Entre elas podem estar tesouros como o primeiro registro de tatus-canastras nadando no Pantanal.
O canastra já é raro em terra,mas no Amolar dois foram flagrados numa piscina natural num bosque com vegetação de Mata Atlântica,aliviando o calor.
O biólogo Wener Hugo Moreno,também do IHP,explica que se não fosse a inteligência artificial,seria impossível analisar todo o material num tempo razoável. Quem processa as fotos e filtra as que mostram bichos é um algoritmo de inteligência artificial. Em média,de 17 mil ficam 600.
Jacaré na Serra do Amolar — Foto: Márcia Foletto
O estudo já reúne 39.292 imagens de armadilhas fotográficas,de 22 pontos de amostragem. Os pesquisadores puderam identificar 164 espécies: 30 de mamíferos,117 de aves e 17 de herpetofauna (répteis e anfíbios). Porém,não sabem ainda o tamanho dessas populações.
Uma das sete câmaras instaladas na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Acurizal,que integra o corredor de biodiversidade do Amolar,fica bem em frente a uma área de restauração. A temperatura medida pelo termômetro integrado à câmera dá noção às dificuldades da vida ali. Não raro,ela chega a 60C durante o dia.
— A ameaça do fogo nos deixa com o coração na mão,esse santuário selvagem vira fornalha em instantes. A queimada de 2020 matou grandes árvores. Agora,cuidamos para que as mudas não tenham o mesmo destino — afirma a analista ambiental do IHP Cristiane Brigitti,responsável pelo trabalho de restauração.
Restaurar não é meramente replantar. É recriar um ecossistema o mais próximo possível da composição original. Na Acurizal há 30 hectares em recuperação. Metade recebeu o plantio de 25 mil mudas de espécies do Amolar,como angico,ipês roxo,branco e amarelo,manduvi,jacarandá,aroeira e cambará.
A outra metade foi limpa,cercada e separada para regeneração natural. Ali crescem lixeiras (o nome se deve à textura das folhas,usadas como lixas naturais pelos pantaneiros),araçás,angicos,pimenteiras (no Pantanal elas são árvores). A única interferência humana é impedir que as mudas sejam destruídas por fogo ou comidas por animais.
— Estamos aprendendo o que é mais apropriado para cada tipo de dano causado pelo fogo e de características do próprio terreno — explica Brigitti.
João Batista Amarillo faz parte da brigada Alto Pantanal no combate ao fogo na região da Serra do Amolar. — Foto: Márcia Foletto
Quando não é possível ver,os cientistas escutam o que dizem os bichos,para entender o impacto do calor extremo,do fogo e da seca sobre o Pantanal. Moreno emprega a bioacústica. Ele escuta as vozes que vem das baías. O canto das aves. O coaxar de sapos,rãs e pererecas. E mergulha o microfone na água para compreender as muitas mensagens dos peixes.
O pesquisador quer descobrir que espécies são mais afetadas e quais delas mudam seus hábitos. Cada espécie tem um som. Por isso,identificar as vozes permite analisar abundância,frequência e padrões de comportamento.
Porém,onde os bichos parecem disputar quem fala mais alto,a sobreposição de vozes dificulta o trabalho. O auxiliar de Moreno na missão é um algoritmo de inteligência artificial que ajuda a identificar quem é quem na tagarelice pantaneira.
Para o trabalho com os peixes,que ainda está no início,Moreno usa um hydromoth,um gravador de sons aquáticos.
— É possível saber quem canta de dia e quem se pronuncia à noite. Os que chegam com o calor e aqueles que vão embora — diz Moreno.
Há também os que ficam e entre eles nenhum é mais majestoso que o tuiuiú,sentinela do Pantanal. No alto de uma árvore à beira do Rio Paraguai,no sopé do Amolar,um tuiuiú abre as asas,cobre o ninho e tenta proteger o filhote do calor sem piedade.
Brigada Alto Pantanal combate fogo na Serra do Amolar — Foto: Márcia Foletto
Se mantém firme com o vento forte. Leva água no bico e molha o filhote,leva comida. Só abandonará a cria se o fogo destruir árvore e ninho. Como a serra onde vive,é um dos maiores exemplos de resistência a um clima em transformação.
O presidente do IHP,Angelo Rabelo,destaca que recuperar áreas queimadas e evitar novos incêndios é um trabalho que une ciência de ponta e aprendizado com a natureza.
— Aqui o homem aprendeu ao longo dos séculos a respeitar a natureza. É um dos últimos territórios selvagens da Terra,cabe a nós garantir que seguirá assim — frisa Rabelo.
(a repórter viajou a convite do Funbio,por meio do Projeto GEF Terrestre)
© Reportagem diária do entretenimento brasileiro